quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Oficina de Poesia II - O Eu - lírico e a figura do poeta: construção e desconstrução em Fernando Pessoa e David Mourão-Ferreira


David Mourão-Ferreira

Escritor e professor universitário português, natural de Lisboa. Licenciou-se em Filologia Românica em 1951. Foi professor do ensino técnico e do ensino liceal e, em 1957, iniciou a sua carreira de professor universitário na Faculdade de Letras de Lisboa.

A sua carreira literária teve início em 1945, com a publicação de alguns poemas na revista Seara Nova. Três anos mais tarde, ingressou no Teatro-Estúdio do Salitre e no Teatro da Rua da Fé. Publicou as peças Isolda (1948), Contrabando (1950) e O Irmão (1965). Em 1950, foi um dos co-fundadores da revista literária Távola Redonda, que se assumiu como veículo de uma alternativa à literatura empenhada, de realismo social, que então dominava o panorama cultural português, defendendo uma arte autónoma.

Deixou ainda traduções e uma gravação discográfica de poemas seus intitulada «Um Monumento de Palavras» (1996). Alguns dos seus textos foram adaptados à televisão e ao cinema, como, por exemplo, Aos Costumes Disse Nada, em que se baseou José Fonseca e Costa para filmar, em 1983, «Sem Sombra de Pecado». David Mourão-Ferreira foi ainda autor de poemas para fados, muitos deles celebrizados por Amália Rodrigues, tal como «Madrugada de Alfama». Recebeu, em 1996, o Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores. David Mourão-Ferreira morreu em 1996, em Lisboa.

Revista Távola Redonda


Nos primeiros dias de fevereiro de 1950, com a data de 15 de janeiro, chegava ao público o fascículo 1 da revista Távola Redonda e que trazia como subtítulo a designção de "folhas de poesia". Seus diretores e editores eram António Manuel Couto Viana, David Mourão-Ferreira e Luiz de Macedo.

A nova revista literária que surgia, reinaugurava um estilo de publicações ausentes há oito anos, já que a última deste tipo, os Cadernos de Poesia, não vinha sendo editada desde 1942.

Os fascículos traziam as páginas que serviriam de capa já com poemas impressos. Todas as suas folhas eram constituídas com o mesmo papel e com a mesma cor para cada fascículo. Em relação à disposição da matéria publicada, a organização era da seguinte forma: nas primeiras páginas, publicava-se poesia; no meio ou final, estudos teóricos ou críticos.

Fica claro, segundo pensamento dos poetas da revista, que em primeiro lugar deve-se dar atenção à poesia, mais especificamente, a um tipo de poesia em que a imaginação deve ter papel preponderante. Poesia, que deve impor-se ao poeta como uma necessidade vital, poesia que deve ser feita principalmente pelos jovens, mas que deve reconhecer nos mais velhos um exemplo a seguir. Uma poesia lírica, e que, por ser pessoal, deve opor-se à tendência social de expressão do coletivo.

Portanto, a revista teve uma missão básica: acolher poetas novos, dando-lhes uma oportunidade e um lugar para publicarem suas produções. Uma das metas principais da revista é a revalorização do lirismo.

Decorrente de uma tradição lírica, inclusive encampada em termos teóricos pela revista, Távola Redonda apresenta, no conjunto de sua produção poética, uma poesia voltada para o próprio "eu" do poeta. Portanto, uma poesia pessoal, característica fundamental do lirismo.

A revista durou quatro anos, de janeiro de 1950 a julho de 1954. Távola Redonda, apresentada como "folhas de poesia", teve sempre uma preocupação básica: "ser um órgão vivo de Poesia, um testemunho da Poesia de seu tempo". Para isso, buscou nos jovens poetas a sua principal fonte de colaboração.

Avaliação crítica

A poesia de David Mourão-Ferreira pode ser dividida em três vertentes básicas: a de lírica amorosa, a de erotismo lírico e a poesia de revalorização do mito. O mito aparece na poesia de David Mourão-Ferreira, como por exemplo, no poema "Inscrição sobre as Ondas", em que um deus anuncia ao poeta que não irá só na "secreta viagem", embora a desejada companhia tenha ficado apenas na promessa segredada pelo deus.

No poema "A secreta Viagem", o mito está presente, embora de uma forma velada, metafórica. Quando Mourão-Ferreira escreve "figuras de legenda...Olhos vagos, perdidos.../ Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...", podemos ter em mente a própria figura do poeta, com seus "olhos vagos e perdidos", do eu lírico e a do próprio poema, do labor poético, quando diz que "por entre nossas mãos, o verde mar escoa...".


Em "Morada", também percebemos a presença do mito. Há referências claras ao Olimpo e ao Monte Parnaso: "era a colina grega! / Em sonhos, a colina / ...Mas a vida nem chega / a não nos dar razão... / Por um tímido preço / um deus nos apontou / na Morte, o endereço...". Podemos perceber as relações com o mito, também, através de seres ou entidades como Vida e Morte, forças antagônicas, grafadas com letra maiúscula. Esse fato é recorrente em muitos de seus poemas, como por exemplo, em "A Secreta Viagem", onde aparece a palavra Mar, com letra maiúscula. O que é comum também em seus poemas, é o constante aparecimento da Lua e do Sol, como deuses, grafados com letras maiúsculas, e novamente temos as forças opostas, antagônicas.


Em David Mourão-Ferreira, o erotismo está mais presente nos poemas "Outono", "Nocturno" e "Espionagem". O termo seio é frequente na poesia de Mourão-Ferreira. No poema "Nocturno" constitui um motivo central. É à sua volta, sob as diferentes formas sinônimas espalhadas por cada uma das estrofes - seio, busto, colo, peito -, que o poema, e o sensualismo, se desenvolvem. Na própria forma que sugere um círculo, por iniciar e terminar com o mesmo verso, apenas ligeiramente modificado, está a imagem poética do "desenho redondo do teu seio" do primeiro verso, ou do "desenho redondo do teu peito" do último.


Alguns dos motivos líricos mais comuns aparecem no poema "A Praia do Encontro", ou seja, o desejo de fuga, o ensinamento que leva o poeta a uma atitude de fechar-se em si próprio, o consequente alheamento, também resultado de uma desilusão. Há de se levar em consideração a consciência romântica do sentir-se inútil por haver falhado no amor: "Esta imaginação de sal e duna,/ inquieta e movediça como areia,/ ergue, isolada, a praia, mais a espuma / que sereia nenhuma / saboreia...". E parece que há a aceitação mórbida de um castigo, de uma espécie de auto-flagelo, quando o poeta diz que "ali estarei, à tua espera, morto, / ou vivo em minha morte / transitória...".


Essa temática do sofrimento, da auto-punição por ter falhado no amor, indica a tendência do poema, lamentosa e impregnada de uma melancolia e de um sentimento de solidão que se reflete, principalmente na primeira e na terceira estrofes.


No poema "Outono", há uma grande carga de erotismo e uma busca da fuga do sonho. Há uma motivação do erotismo que flui de uma temática em que o amor e a posse estão sempre presentes, como forças similares. Há uma tentativa, por parte do poeta, como foi dito acima, de não permanecer em estado onírico, em buscar sua fuga do sonho, do torpor, porém, primeiramente não o consegue: "seria bom dormir assim,/ ao deus-dará, como eu desejo.../ mas o teu seio é que não quis:/ tremeu demais sob o meu rosto.../ agora nu, será feliz,/ sob o afago do sol posto...". Podemos notar que só há prazer quando o sol se põe, ou seja, uma visão poética um tanto romântica.


Notemos que, novamente, um ser inanimado aparece grafado com letra maiúscula, "Outono", técnica recorrente na poética de David Mourão-Ferreira, e que nos remete à idéia de que "Outono" aqui, pode ser entendido como sonho. O poeta se pergunta se "seria Outono aquele dia", ou seja, ele não sabe se o fato descrito ocorreu no plano contingente (da realidade) ou no plano transcendente (da memória). Porém nos dois últimos versos, há a comprovação de que o ato amoroso, o toque dos seios em seu rosto, dos afagos, enfim, ocorreram no plano real. Houve predomínio da contingência sob a transcendência.


Em "Espionagem" a temática do erotismo está presente novamente. Porém aqui, sob uma forma mais bruta e intensa do que em "Outono". O poeta refere-se a termos como "mórbido apetite", "crueldade", e que nos remete a uma imagem de cópula, de um ato um tanto quanto selvagem, e até, se pensarmos na primeira estrofe, sadismo: "O mórbido apetite - a crueldade/ que cada um dentro de si trazia-/ atingiu, nesse dia,/ a saciedade...".

Nessa primeira estrofe podemos perceber que as pessoas só chegam à saciedade através da dor, que consequentemente lhes traz prazer. O poeta diz que cada um trazia dentro de si a crueldade, o mórbido apetite e que nesse dia sentiram-se satisfeitos, atingiram a saciedade, o orgasmo.

Na última estrofe do poema, temos a imagem de um casal, "anjos do inferno" extasiados após o ato sexual. Note-se aqui a caracterização do espaço, pois o poeta faz menção a "um espelho , no quarto", e que nos remete, claramente, a imagem de um quarto de motel.

Podemos perceber também a presença de uma profanação do sexo, ou seja, o ato sexual é visto aqui como um ato instintivo e não idealizado, como era comum no Romantismo.


Na poesia de David Mourão-Ferreira podemos levar em consideração a poesia "fingida", e aqui fingida está ligada a um conceito de poesia pensada, intelectualizada. Portanto, uma poesia correlacionada, por oposição, à poesia "sincera". Lembremos de Fernando Pessoa em "Autopsicografia".

A última estrofe do poema "Poesia de amor" exemplifica a consciência do fingimento como um problema de teorização poética. Por inspiração da amada, o poeta cantou às flores do pinho e nas margens das ribeiras, mas quando tomará conhecimento que o motivo foi só ela para "essas falsas canções, tão verdadeiras"?

O poeta diz "falsas canções", porque tem consciência de que são fingidas, criadas pelo "eu" lírico, e que, portanto, constituem ficção. E diz "tão verdadeiras"porque assim as considera vivencialmente, o poeta as considera verdadeiras, o homem, o autor. Podemos fazer ainda uma outra leitura do poema. Se as canções são falsas porque são fingidas, o motivo dessas canções é, porém, verdadeiro. E este motivo verdadeiro é o amor que o poeta dedica à inspiradora do poema.

POEMAS ANALISADOS NESTE ESTUDO:

Inscrição sobre as ondas

Mal fora iniciada a secreta viagem
um deus me segredou que eu não iria só.
Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que deus me segredou.

Secreta Viagem

barco sem ninguém ,anónimo e vazio,
ficámos nós os dois ,parados ,de mão dada ...
Como podem só os dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais,e de maneira, à proa...
Que figuras de lenda!Olhos vagos,perdidos...
Por entre nossas mâos , o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos,sem ver,a longínqua miragem...
Aonde iremos ter?- Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa ,passa...alheio aos meus sentidos.
-Desfeitos num rochedo ou salvos na ensseada,
a eternidade é nossa ,em madeira esculpidos!

Morada

Era a colina grega!
(Em sonhos, a colina...)
Que ninguém a defina!
- Era a colina grega...
Em sonhos, a colina.

Mas a Vida nem chega
a não nos dar razão:
autoritária e cega,
leva a colina grega
em outra direcção.

(Por um tímido preço,
um deus nos apontou,
na Morte, o endereço
de quem não se encontrou.)

Outono

Mas quem diria ser Outono
se tu e eu estávamos lá?
(Tínhamos sono...Tanto sono!
É bom dormir ao deus-dará...)

E sobre o banco do jardim,
ante a cidade, o cais e o Tejo,
seria bom dormir assim,
ao deus-dará, como eu desejo...

Mas o teu seio é que não quis:
tremeu de mais sob o meu rosto...
Agora, nu, será feliz,
sob o afago do sol-posto...

Seria Outono aquele dia,
nesse jardim, doce e tranquilo...?
Seria Outono...
Mas havia
todo o teu corpo a desmenti-lo.

Noturno

O desenho redondo do teu seio
Tornava-te mais cálida, mais nua
Quando eu pensava nele...Imaginei-o,
À beira-mar, de noite, havendo lua...

Talvez a espuma, vindo, conseguisse
Ornar-te o busto de uma renda leve
E a lua, ao ver-te nua, descobrisse,
Em ti, a branca irmã que nunca teve...

Pelo que no teu colo há de suspenso,
Te supunham as ondas uma delas...
Todo o teu corpo, iluminado, tenso,
Era um convite lúcido às estrelas....

Imaginei-te assim á beira-mar,
Só porque o nosso quarto era tão estreito...
- E, sonolento, deixo-me afogar
No desenho redondo do teu peito...

Espionagem

O mórbido apetite - a crueldade
que cada um dentro de si trazia -
atingiu, nesse dia,
a saciedade.
Baixo, brilhou, com sua luz rasteira,
um sol polar, de pálpebra pesada
- na lâmpada velada
à cabeceira.

O leito foi um estreito redondel;
o amor, um vidro sob um diamante:
pois tudo foi vibrante
e foi cruel.

O desgraçado par que te supunhas
bem ao abrigo de qualquer olhar,
num seguro lugar,
sem testemunhas!

Mas um espelho, no quarto, transmitia
aos anjos do Inferno, extasiados,
os férteis resultados
desse dia.

Praia do Encontro

Esta imaginação de sal e duna,
inquieta e movediça como areia,
ergue, isolada, a praia, mais a espuma
que sereia nenhuma
saboreia...

Quisesses tomar tu este veleiro,
que em secreto estaleiro construí,
sem velas, sem cordame, sem madeira
- mas branco, e todo inteiro
para ti...

Brilha uma luz de morte sobre o porto
saido mesmo agora da memória...
Ali estarei, à tua espera, morto,
ou vivo em minha morte
transitória...

Combinado. Que eu juro não faltar!
Contrário de Tristão, renascerei,
se pressentir, aérea, sobre o mar,
a sombra singular
do barco que te dei.

Poesia de Amor

Vieram aves negras em teu nome,
secas folhas de plátano e de tília...
Amargamente, a fonte segredou-me
tudo quanto eu sabia
da sorte de Marília;
e que Dirceu
poderei ser eu,
Ausente embora, continuo a endereçar-te mil endechas.
Não sei mais nada: sei amor. Assim destruo,
pela canção, a doentia
coloração das minhas queixas.
Bárbara escrava?
Que me importava!
Além do amor, o meu amor quer melodia.

Cantei às flores de pinho, verde e vivo;
cantei nas margens verdes das ribeiras.
- Quando hás-de ver que foste só motivo
para falsas canções,
tão verdadeiras?

Referências

BUENO, Jayme F. (org.) Literatura Portuguesa: O Modernismo, 1ª Fase. Curitiba:EDUCA, 1985.
BUENO, Jayme F. Távola Redonda: uma experiência lírica. Curitiba: EDUCA, 1983.

GARCEZ, Maria Helena N. Trilhas em Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. São Paulo: Moraes, 1989.

MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia não é difícil. Porto Alegre: Arte e Ofícios, 1996.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 8ª ed. São Paulo: Cultrix, 1970.

MOURÃO-FERREIRA, David. Obra Poética. 1º volume. Lisboa: Bertrand, 1980.

MOURÃO-FERREIRA, David. Obra Poética. 2º volume. Lisboa: Bertrand, 1980.

PAIXÃO, Fernando. O que é Poesia. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

PESSOA, Fernando. Poemas Escolhidos. São Paulo: Klick, 1997.




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