Em Nome da Terra é um romance já da fase final de Vergílio Ferreira, publicado em 1990. Depois vieram Na Tua Face e Cartas a Sandra, este seu último livro publicado, já póstumo. Seus romances publicados no final da década de 80 até a metade da de 90, apresentam temas e enredos bastante semelhantes, circulares, porém é na linguagem que Vergílio Ferreira se diferencia em suas próprias obras. Como em entrevista dada a Pedro Rolo Duarte, um ex-aluno seu, Vergílio Ferreira falou sobre o fato das pessoas dizerem que ele fala sempre sobre os mesmo temas: “bom, isso é o drama de todo o escritor, ser diferente na igualdade. Costumo dizer que o que há de mais diferente na igualdade é o mar - somos capazes de estar a olhar para ele numa hora seguida, é sempre igual mas é sempre diferente: o tamanho de uma onda, o rebentar de outra, a espuma. Ora, se é possível no mar essas diferenças, também é possível no escritor”.
Em um romance como Em Nome da Terra, no qual há um narrador em primeira pessoa, João, a questão da memória é muito relevante. A narrativa auto - diegética contribui muito para o diálogo interior, para o tempo psicológico e também para a quebra com a noção de tempo estanque, ou seja, de uma estrutura temporal que apresente início, meio e fim, nessa ordem.
Há de se levar em consideração nessa obra, além da intertextualidade com obras e textos da antiguidade, uma dicotomia. Ao mesmo tempo em que surge João com seu corpo mutilado, decadente, há a presença de Mônica, com seu corpo maravilhoso e jovem. Claro, a imagem idealizada de Mônica, a imagem de sua beleza é toda rememorada, ou seja, ocorre através da evocação do passado, do tempo em que os dois eram jovens e se amavam. Pois no presente João está recolhido a uma casa de repouso e Mônica morta. E antes de sua morte ficou muito doente, senil, sob os cuidados de João.
Em relação à intertextualidade com textos da antiguidade, o que é mais pertinente aqui são as referências à Bíblia e a construção dos quatro motivos materiais que são designados por símbolos, o Cristo, o fresco de Pompéia, o desenho de Dürer e o concerto para oboé de Mozart. Trataremos a seguir de cada um destes símbolos.
A figura de Cristo aqui faz referência ao próprio sofrimento de João, pois há pouco tempo uma perna sua fora amputada, e a imagem de Cristo tinha uma perna quebrada. João se identifica com a imagem a ponto de ver-se no lugar do crucificado, abandonado e mutilado.
É só aí que me interessas. Na lástima desse teu corpo. Na amargura da solidão. Como te devias te sentir só. É só aí que me interessas. Na lástima desse teu corpo. Na amargura da solidão.
Algo interessante nessa passagem é a quebra de seu monólogo dirigido à Mônica, e se dirige ao próprio Cristo, algo que ainda não havia acontecido em sua narrativa. João só havia se dirigido à Mônica, a ninguém mais, todos os seus diálogos com Márcia, sua filha que o leva à casa de repouso, é lembrado por João, ou seja, através da evocação deles que aos poucos vão aparecendo no papel.
É quando João vai de fato para a casa de repouso que sua identificação com Cristo torna-se mais direta, pois assim como ele, Cristo não tinha uma perna, fato esse que fez com que João se sentisse muito mais solitário e já no final da vida. O Cristo mutilado para João é desprovido “de qualquer santidade”, assim como ele, é apenas um homem. Um símbolo do fim, da noção de finitude e da fragilidade da vida humana. Junta-se a isso o agravante da perda de Mônica e do abandono dos filhos. João torna-se um sofredor solitário que não tem mais autonomia alguma, da mesma maneira que Mônica durante sua doença que a levou à morte.
A imagem de Cristo no romance está diretamente ligada à imagem do corpo, principalmente de João já decadente e de Mônica senil e debilitada. São imagens belíssimas que causam um incômodo durante a leitura, muito por conseqüência da linguagem poética que permeia toda a narrativa.
A imagem do fresco de Pompéia no romance é a representação de Mônica, mas de Mônica ainda jovem, em seu esplendor. Há nesse fresco a imagem da deusa Flora, e assim como João via-se no lugar de Cristo crucificado e mutilado, via Mônica no lugar da deusa no fresco.
Agora quero olhar-te no fresco de Pompéia. Vê a face. Olho-a infinitamente para tu lá estares e ouço-te rir porque não estarias nunca.
Percebe-se aqui o desejo de João de eternizar a imagem de Mônica colocando-a como elemento do fresco, em uma imagem idealizada muito significativa no romance. O que difere de sua imagem como Cristo, pois ele sofre, está imerso em um abandono irredutível, porém Mônica encarna a imagem da beleza eterna, como era desejo de João.
- Jura que nunca hás de envelhecer - disse-te.
- Juro.
- E que nunca hás de morrer.
- Sim.
- E que a beleza estará sempre contigo. E a glória e a paz.
- Juro.
Nota-se com essa passagem do primeiro capítulo, o desejo de eternidade de João, ou seja, para Vergílio Ferreira, “a morte não é o limite, porque a vida não acaba na morte, acaba sempre mais cedo”. Para João, “só vale a pena na vida o que for contra a morte”. Daí o desejo pela eternidade de Mônica, pelo infinito, pois uma das máximas do existencialismo é que a morte é um absurdo e que não faz parte da vida.
Em contraposição à imagem da deusa Flora no fresco de Pompéia, há a imagem da morte em um quadro de Dürer. Nesse desenho de Dürer há a presença da morte, do espectro da morte, sempre a espreitar. O interessante aqui é a disposição desses objetos, o cristo mutilado, o fresco de Pompéia e o desenho de Dürer, no quarto de João na casa de repouso. Cristo está no centro, o fresco está a um dos lados e o desenho de Dürer do outro. E é através dessa disposição espacial que João vai atribuir os diferentes significados a cada objeto. O cristo mutilado está perante a beleza divina, que é representada pela deusa Flora em clara alusão à Mônica. E perante o espectro da morte sempre a espreitar, diz João à Mônica:
É um desenho macabro que me fez quase sorrir. É de Dürer, minha querida, a Morte coroada e a cavalo. (...) É um esqueleto curvado com a sua gadanha ceifeira sobre um cavalo esquelético com um chocalho.
A Morte aqui grafada com letra maiúscula aparece sempre diante de João mas ele não a leva a sério. Ele diz que aquele “desenho macabro quase o fez sorrir”. Podemos entender essa passagem como o momento de resignação do narrador, ou seja, o fim já é inevitável, não lhe resta mais nada, portanto nada mais a fazer diante da morte. Mais adiante João se refere novamente à imagem dela no quadro de Dürer:
É a figuração mais ridícula da morte, foi talvez por isso que eu o pus aqui dentro.
O último símbolo dos quatro referidos acima é o concerto para oboé de Mozart.
José Leon Machado, professor português e autor de artigo sobre o romance, escreveu:
Em Nome da Terra tem como fundo essa música, como num filme, que o atravessa e lhe dá ritmo, a ambiência criada pelo timbre áspero e roufenho do oboé.
Quando João ouve essa música, ele proclama o nome de Mônica, como se mais uma vez ele a visse presente em símbolos, nesse caso na música. João diz ouvir o nome da esposa no concerto, em uma passagem belíssima do romance:
Vou talvez ouvir de novo o teu nome no concerto de Mozart para oboé. (...) Vou ouvir em paz o amor do teu nome.
Mônica aqui é o próprio oboé, e a melodia remete a memória de um esplendor já desaparecido há tempos do corpo jovem de Mônica. Essa imagem do oboé é a imagem da esposa jovem nas barras de ferro do ginásio, quando era ginasta na juventude. Imagem idealizada essa, pois foi nas barras de ferro e como ginasta que João a conheceu.
E o oboé sozinho longamente, como ele brinca, dança, vejo-te. No espaço da Sé, no ginásio.
Os símbolos no romance são muito ricos, muito significativos e é através da linguagem que adquirem significados tão profundos. As diversas referências à bíblia, à antiguidade clássica e a implicação formal da escrita constroem uma narrativa densa, consistente e também tensa. As referências à bíblia já aparecem na epígrafe. Hoc est corpus meun (com este meu corpo), Mateus, XXVI, 26. E esta referência ao corpo é que serve de mote para a obra, que através da memória de João adquire esse tom ensaístico tão presente em outras obras de Vergílio Ferreira.
Consequentemente, as referências ao corpo, ao seu fim, podem trazer significado para o título, EM NOME DA TERRA. A Terra aqui é vista com certa reverência, pois é ela que dá sustento ao homem, porém também é nela onde o homem é enterrado. A terra aqui recebe um significado metafísico já implícito no indivíduo. Portanto, a Terra, grafada em maiúsculo, faz as vezes de Deus, pois a figura que mais se aproxima de Deus retratada no romance é Cristo, mas esse Cristo, como diz João, “é desprovido de qualquer divindade”. O homem aqui se eternizará na sua própria imagem, ou seja, não há para João a presença de paraíso, mas sim da própria Terra. E é assim que Vergílio Ferreira encerra o romance, como no início:
- Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição.
E tu dirás está bem.
Em um romance como Em Nome da Terra, no qual há um narrador em primeira pessoa, João, a questão da memória é muito relevante. A narrativa auto - diegética contribui muito para o diálogo interior, para o tempo psicológico e também para a quebra com a noção de tempo estanque, ou seja, de uma estrutura temporal que apresente início, meio e fim, nessa ordem.
Há de se levar em consideração nessa obra, além da intertextualidade com obras e textos da antiguidade, uma dicotomia. Ao mesmo tempo em que surge João com seu corpo mutilado, decadente, há a presença de Mônica, com seu corpo maravilhoso e jovem. Claro, a imagem idealizada de Mônica, a imagem de sua beleza é toda rememorada, ou seja, ocorre através da evocação do passado, do tempo em que os dois eram jovens e se amavam. Pois no presente João está recolhido a uma casa de repouso e Mônica morta. E antes de sua morte ficou muito doente, senil, sob os cuidados de João.
Em relação à intertextualidade com textos da antiguidade, o que é mais pertinente aqui são as referências à Bíblia e a construção dos quatro motivos materiais que são designados por símbolos, o Cristo, o fresco de Pompéia, o desenho de Dürer e o concerto para oboé de Mozart. Trataremos a seguir de cada um destes símbolos.
A figura de Cristo aqui faz referência ao próprio sofrimento de João, pois há pouco tempo uma perna sua fora amputada, e a imagem de Cristo tinha uma perna quebrada. João se identifica com a imagem a ponto de ver-se no lugar do crucificado, abandonado e mutilado.
É só aí que me interessas. Na lástima desse teu corpo. Na amargura da solidão. Como te devias te sentir só. É só aí que me interessas. Na lástima desse teu corpo. Na amargura da solidão.
Algo interessante nessa passagem é a quebra de seu monólogo dirigido à Mônica, e se dirige ao próprio Cristo, algo que ainda não havia acontecido em sua narrativa. João só havia se dirigido à Mônica, a ninguém mais, todos os seus diálogos com Márcia, sua filha que o leva à casa de repouso, é lembrado por João, ou seja, através da evocação deles que aos poucos vão aparecendo no papel.
É quando João vai de fato para a casa de repouso que sua identificação com Cristo torna-se mais direta, pois assim como ele, Cristo não tinha uma perna, fato esse que fez com que João se sentisse muito mais solitário e já no final da vida. O Cristo mutilado para João é desprovido “de qualquer santidade”, assim como ele, é apenas um homem. Um símbolo do fim, da noção de finitude e da fragilidade da vida humana. Junta-se a isso o agravante da perda de Mônica e do abandono dos filhos. João torna-se um sofredor solitário que não tem mais autonomia alguma, da mesma maneira que Mônica durante sua doença que a levou à morte.
A imagem de Cristo no romance está diretamente ligada à imagem do corpo, principalmente de João já decadente e de Mônica senil e debilitada. São imagens belíssimas que causam um incômodo durante a leitura, muito por conseqüência da linguagem poética que permeia toda a narrativa.
A imagem do fresco de Pompéia no romance é a representação de Mônica, mas de Mônica ainda jovem, em seu esplendor. Há nesse fresco a imagem da deusa Flora, e assim como João via-se no lugar de Cristo crucificado e mutilado, via Mônica no lugar da deusa no fresco.
Agora quero olhar-te no fresco de Pompéia. Vê a face. Olho-a infinitamente para tu lá estares e ouço-te rir porque não estarias nunca.
Percebe-se aqui o desejo de João de eternizar a imagem de Mônica colocando-a como elemento do fresco, em uma imagem idealizada muito significativa no romance. O que difere de sua imagem como Cristo, pois ele sofre, está imerso em um abandono irredutível, porém Mônica encarna a imagem da beleza eterna, como era desejo de João.
- Jura que nunca hás de envelhecer - disse-te.
- Juro.
- E que nunca hás de morrer.
- Sim.
- E que a beleza estará sempre contigo. E a glória e a paz.
- Juro.
Nota-se com essa passagem do primeiro capítulo, o desejo de eternidade de João, ou seja, para Vergílio Ferreira, “a morte não é o limite, porque a vida não acaba na morte, acaba sempre mais cedo”. Para João, “só vale a pena na vida o que for contra a morte”. Daí o desejo pela eternidade de Mônica, pelo infinito, pois uma das máximas do existencialismo é que a morte é um absurdo e que não faz parte da vida.
Em contraposição à imagem da deusa Flora no fresco de Pompéia, há a imagem da morte em um quadro de Dürer. Nesse desenho de Dürer há a presença da morte, do espectro da morte, sempre a espreitar. O interessante aqui é a disposição desses objetos, o cristo mutilado, o fresco de Pompéia e o desenho de Dürer, no quarto de João na casa de repouso. Cristo está no centro, o fresco está a um dos lados e o desenho de Dürer do outro. E é através dessa disposição espacial que João vai atribuir os diferentes significados a cada objeto. O cristo mutilado está perante a beleza divina, que é representada pela deusa Flora em clara alusão à Mônica. E perante o espectro da morte sempre a espreitar, diz João à Mônica:
É um desenho macabro que me fez quase sorrir. É de Dürer, minha querida, a Morte coroada e a cavalo. (...) É um esqueleto curvado com a sua gadanha ceifeira sobre um cavalo esquelético com um chocalho.
A Morte aqui grafada com letra maiúscula aparece sempre diante de João mas ele não a leva a sério. Ele diz que aquele “desenho macabro quase o fez sorrir”. Podemos entender essa passagem como o momento de resignação do narrador, ou seja, o fim já é inevitável, não lhe resta mais nada, portanto nada mais a fazer diante da morte. Mais adiante João se refere novamente à imagem dela no quadro de Dürer:
É a figuração mais ridícula da morte, foi talvez por isso que eu o pus aqui dentro.
O último símbolo dos quatro referidos acima é o concerto para oboé de Mozart.
José Leon Machado, professor português e autor de artigo sobre o romance, escreveu:
Em Nome da Terra tem como fundo essa música, como num filme, que o atravessa e lhe dá ritmo, a ambiência criada pelo timbre áspero e roufenho do oboé.
Quando João ouve essa música, ele proclama o nome de Mônica, como se mais uma vez ele a visse presente em símbolos, nesse caso na música. João diz ouvir o nome da esposa no concerto, em uma passagem belíssima do romance:
Vou talvez ouvir de novo o teu nome no concerto de Mozart para oboé. (...) Vou ouvir em paz o amor do teu nome.
Mônica aqui é o próprio oboé, e a melodia remete a memória de um esplendor já desaparecido há tempos do corpo jovem de Mônica. Essa imagem do oboé é a imagem da esposa jovem nas barras de ferro do ginásio, quando era ginasta na juventude. Imagem idealizada essa, pois foi nas barras de ferro e como ginasta que João a conheceu.
E o oboé sozinho longamente, como ele brinca, dança, vejo-te. No espaço da Sé, no ginásio.
Os símbolos no romance são muito ricos, muito significativos e é através da linguagem que adquirem significados tão profundos. As diversas referências à bíblia, à antiguidade clássica e a implicação formal da escrita constroem uma narrativa densa, consistente e também tensa. As referências à bíblia já aparecem na epígrafe. Hoc est corpus meun (com este meu corpo), Mateus, XXVI, 26. E esta referência ao corpo é que serve de mote para a obra, que através da memória de João adquire esse tom ensaístico tão presente em outras obras de Vergílio Ferreira.
Consequentemente, as referências ao corpo, ao seu fim, podem trazer significado para o título, EM NOME DA TERRA. A Terra aqui é vista com certa reverência, pois é ela que dá sustento ao homem, porém também é nela onde o homem é enterrado. A terra aqui recebe um significado metafísico já implícito no indivíduo. Portanto, a Terra, grafada em maiúsculo, faz as vezes de Deus, pois a figura que mais se aproxima de Deus retratada no romance é Cristo, mas esse Cristo, como diz João, “é desprovido de qualquer divindade”. O homem aqui se eternizará na sua própria imagem, ou seja, não há para João a presença de paraíso, mas sim da própria Terra. E é assim que Vergílio Ferreira encerra o romance, como no início:
- Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição.
E tu dirás está bem.
2 comentários:
bicho, comprei o alegria breve, e só o primeiro capítulo me bastou
Pô, Giuliano, o Alegria Breve está entre suas melhores obras. Durante a leitura você vai sentir o gelo das montanhas da Serra da Estrela.
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