domingo, 21 de setembro de 2008

TÁVOLA REDONDA: uma homenagem a seus colaboradores


Jayme Ferreira Bueno*

Depois de mais de cinqüenta e oito anos, após o aparecimento, é viva a presença da revista Távola Redonda na memória de quem teve a felicidade de lê-la e estudá-la nos anos de 1980, quando ela ainda era novidade na crítica portuguesa e brasileira. Depois da publicação do trabalho Távola Redonda: uma experiência lírica, houve alguns encontros, mesmo no Brasil, mais especificamente em São Paulo para relembrar aqueles anos de poesia lírica em Portugal, que a revista teve o mérito de divulgar.

Na Casa de Mário de Andrade, no bairro da Barra Funda, na capital paulista, em 1989, quando a revista iria completar quarenta anos, compareceu grande parte dos poetas que fizeram a revista, com destaque para o fundador, David Mourão-Ferreira e um de seus diretores, Manuel Couto Viana. Foi uma comemoração que, no Brasil, realçou a importância daquelas Folhas de Poesia, publicadas em Lisboa no período de 1950 a 1954.

Apresentam-se a seguir exemplos da poesia que foi feita em Távola Redonda, naqueles anos de 1950, de intenso lirismo em uma literatura já lírica por excelência, como a que sempre se fez em Portugal.

1. DAVID MOURÃO-FERREIRA

O mais destacado dos poetas de Távola Redonda foi, sem dúvida, David Mourão-Ferreira, exatamente o idealizador, fundador e co-diretor da revista. Foi crítico de renome, escreveu sobre poesia, prosa e teatro, assim como produziu em todas essas áreas da literatura. Era poeta que conseguia manifestar conhecimento em seus poemas, para produzir uma poesia de intenso lirismo filtrado pela inteligência. Era, talvez, o único dessa geração que fazia uma poesia pensada, além de profundamente sentida, repleta de símbolos míticos, o que valorizava sobremodo toda a sua produção poética.

Na revista, David colaborou com textos críticos e notas explicativas. Sua intensa atividade como poeta fez que publicasse em Távola Redonda vinte e seis poemas, dos quais, em sua homenagem, aqui se reproduz este publicado no Fascículo 7, página 3:

A SECRETA VIAGEM

No barco sem ninguém, anónimo e vazio,

ficamos nós os dois, parados, de mão dada...

Como podem só dois governar um navio?

Melhor é desistir, e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,

tornamo-nos reais, e de madeira, à proa ...

Figuras de legenda... Olhos vagos, perdidos...

Por entre nossas mãos, o verde Mar se escoa...

Aparentes senhores dum barco abandonado,

nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...

Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado

Se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.

O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.

- Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,

a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!

2. ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA

Foi um dos diretores de Távola Redonda. Sempre esteve ao lado de David Mourão-Ferreira na redação e no planejamento da revista. Como poeta foi muito criticado por setores da crítica portuguesa, que não perdoava o seu intenso lirismo, principalmente por aqueles da revista de cunho realista, Árvore dirigida e orientada esteticamente por António Ramos Rosa.

A poesia de António Manuel Couto Viana é lírica, musical, voltada para o “eu”. A sua temática é tradicional e talvez aí residisse o motivo das críticas. Apresenta em seus poemas o drama da consciência do envelhecer, a busca da recuperação do tempo pela poesia e a aceitação da solidão como auto-flagelo por haver falhado no amor. A poesia era também uma espécie de escapismo em que busca o último refúgio.

Em sua homenagem, aqui se reproduz um poema que foi publicado no Fascículo 15, página 4:

POESIA

Com mão alada procuro

O emocional desenho puro:

A linha é frágil; o verso é duro.

A claridade dos cimos!

Por alcançar nos desmedimos:

Turvam a fonte os humanos limos.

Fique meu gesto suspenso

Com o branco sinal dum lenço

Por sobre o mundo nocturno e imenso.

3. FERNANDA BOTELHO

Távola Redonda teve o mérito também de incluir entre seus fundadores algumas poetisas, o que não era comum naqueles anos de 1950. Assim, Fernanda Botelho participou do primeiro grupo da revista, aquele que a idealizou e a fundou. Poetisa, romancista, novelista, contista e tradutora, Fernanda Botelho vem de uma tradicional estirpe de escritores portugueses. É sobrinha-neta do grande romancista do Naturalismo português Abel Botelho e é também aparentada do grande prosador do Romantismo Camilo Castelo Branco.

Uma das novidades da poesia de Fernanda Botelho é trazer para seus poemas o emprego de imagens geometrizantes. Apresenta também formas tradicionais, como as bailias, formas da tradição medievais e medievalizantes da poesia portuguesa, uma profunda ironia em seus versos e a temática do amor impossível. Uma outra sua característica marcante é a poesia metapoética, o que a eleva à altura dos principais poetas da literatura portuguesa.

Como homenagem à poetisa, transcreve-se o poema do Fascículo 10, página 1:

AS COORDENADAS LÍRICAS

Desviou-se o paralelo um quase nada

e tudo escureceu:

era luz disfarçada em madrugada

a luz que me envolveu.

A geométrica forma de meus passos

procura um mar redondo.

Levo comigo, dentro dos meus braços,

oculto, todo o mundo.

Sozinha já não vou. Apenas fujo

às negras emboscadas.

Em cada esfera desenho o meu refúgio

- as minhas coordenadas.

4. MARIA MANUELA COUTO VIANA

Maria Manuela Couto Viana é irmã do poeta António Manuel Couto Viana. Além de poética, ela publicou o romance Raízes que não secam (1942), com o qual concorreu e obteve o prêmio do concurso “procura um Romancista”. Dedica-se mais freqüentemente à poesia infantil, como autora e tradutora. Publica também sobre folclore.

A sua poesia apresenta tendências neo-esteticistas pelo emprego de formas fixas, como a ode e o soneto. Volta-se para os símbolos das histórias infantis e das crendices populares e também a expressão de desejos íntimos colocados num plano idealizado, o que tornam a sua poesia profundamente lírica e pessoal.

Aqui a poetisa é homenageada com um poema publicado no Fascículo 6, na página 2:

REVELAÇÃO

Senta-te à cabeceira,

Dá-me teus finos dedos,

Destrua-se a fronteira

Dos íntimos segredos.

Branca face lunar

A estranha face tua.

Vejo-me em teu olhar

Desamparada e nua.

Do que me queres dizer

Adivinho o sentido:

Como é triste morrer

Antes de ter vivido!

Nem carícia nem voz,

Só pálpebra tombada.

Já, para além de nós,

Se alonga a dura estrada...

Que aroma de aloés

Neste silêncio arde!...

Agora sei quem és,

Mas agora é tão tarde...


Távola Redonda se filiou à poesia lírica portuguesa tradicional. Inscreveu-se na tendência poética que provinha de A Águia, de parte de Orpheu e principalmente da Presença, da qual recebeu forte influência tanto na poesia, como na orientação estética daquela revista, que havia predominado na década de 30. Assim, ela se opôs à poesia de vanguarda, como, por exemplo, a surrealista, e, de certo modo, contestou a poesia de orientação socializante, como a do Neo-Realismo.

Procurou sempre manter-se conservadora e apolítica, como já fora a própria Presença. Preferiu, portanto, uma atitude de não-participação ativa no momento histórico, a não ser por uma espécie de ceticismo, que foi característica de grande parte da poesia da década de cinqüenta. Esse sentimento cético em relação aos destinos políticos do mundo, e em especial de Portugal, aliado a um ideário de índole subjetiva, levou a revista rumo a uma retomada do lirismo.

A posição que Távola Redonda assume, assim, um aparente descompromisso com o social, o que leva a sua produção poética a se voltar para um neo-esteticismo, a ponto de fazer da temá­tica da própria poesia uma de suas preocupações fundamentais. Como decorrência dessa retomada do lirismo e da preocupação estética, Távola Redonda teve o mérito de fazer renascer em Portugal a atmosfera poética, ausente em grande parte da poesia da década anterior.

Os exemplos reproduzidos neste texto demonstram em parte esse lirismo que se mostrava aparente em todos os Fascículos de Távola Redonda.


Jayme Ferreira Bueno* é professor de Literatura Portuguesa e publicou Távola Redonda: uma experiência lírica, que resultou da tese de doutorado em Letras na Universidade de São Paulo.


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