O mundo literário nunca esteve tão conectado como atualmente. Reflexo, naturalmente, da era da globalização em que vivemos. Nessa era globalizada, são cada vez mais raros os momentos de solidão, crucial para a prática da leitura, e essa, por sua vez, é relegada a um segundo plano. É como se vivêssemos na Londres futurista de Admirável Mundo Novo, na qual qualquer atividade individual era proibida e punida rigidamente pelo estado. Uma espécie de versão (antecipação) do que veio a ser o stalinismo no pós-guerra.
Enquanto grandes livros de grandes autores são esquecidos ou apenas lidos dentro dos meios acadêmicos, outros vendem como qualquer material artístico pop. Temos aí o exemplo de Paulo Coelho, Sidney Sheldon, Danielle Steel e outros. Normalmente o que vende muito não é muito bem visto por acadêmicos, salvo exceções. José Saramago é um desses casos, que além de vender muito bem, pois sempre que publica um novo livro, já entra diretamente para a lista de mais vendidos, é um grande escritor.
Caso raro na literatura, Saramago agrada tanto acadêmicos quanto leigos, fato que se torna um impasse muitas vezes, pois, ao passo em que o escritor torna-se cada vez mais conhecido e popular, a academia passa e rejeitá-lo. Há uma relação de amor e ódio entre Saramago e a academia, fato muito interessante, um fenômeno inusitado. Portanto, discorrerei aqui sobre dois livros seus que chamam a atenção. O primeiro é Levantado do Chão (1979), seu primeiro grande romance, e A Viagem do Elefante (2008), seu mais recente trabalho publicado.
Levantado do Chão narra a trajetória, repleta de percalços, da família Mau-Tempo, durante um século. Desde o final do século XIX até os conturbados acontecimentos pré e pós o 25 de abril. O romance apresenta um enredo linear, sem grandes complicações formais, com a exceção de que é nesse livro que Saramago, pela primeira vez, descarta o uso de pontos, travessões e outras indicações de diálogos. Saramago pratica frequentemente em Levantado do Chão o discurso indireto livre.
Saramago pratica nessa obra uma espécie de Neo-Realismo tardio, pois escreve sobre trabalhadores rurais do Alentejo que lutam contra um sistema capitalista opressor. Tardio porque o movimento neo-realista teve seu auge nas décadas de 40 e 50, e depois deu espaço a outros movimentos não necessariamente engajados como era o Neo-Realismo. Saramago recupera esse engajamento nessa obra, porém, é através da forma que Levantado do Chão se diferencia das outras, da força das imagens rurais, da violência descrita de forma tão real e poética.
Conforme os anos vão passando, os membros da família Mau-Tempo vão se mostrando incapazes de mudarem a situação de família oprimida de trabalhadores rurais. Eles são representantes de todas as famílias do Alentejo, miseráveis e oprimidos pela ditadura e pelo trabalho em condições sub-humanas. Esse livro é um grito de liberdade contra o abuso do poder. O título é muito significativo, pois representa a situação do trabalhador alentejano, que ao mesmo tempo em que encontra o seu sustento na terra, essa é seu algoz, cruel e impiedosa. O levantado tanto pode significar o homem que surge da terra, ou seja, sobrevive através dela (a terra como apoio), quanto a sociedade que o oprime, pois o homem é levantado à força e jogado à terra novamente quando chega sua hora. É um título muito bem construido, como o é todo o romance. Suas imagens das montanhas, dos temporais que devastam as plantações, das vilas e dos curiosos tipos que surgem no decorrer de um século fazem de Levantado do Chão um grande romance sobre o Alentejo, no qual não há personagens principais, é um drama coletivo, ao tipo de Alves Redol. É um hino à vida.
O último romance de Saramago, A Viagem do Elefante (2008) narra o périplo de Salomão, um elefante que é oferecido como presente de Dom João III a Maximiliano II, Arquiduque da Áustria. E para executar tal tarefa, é montada uma caravana com mais de 30 soldados do reino de D. João, um cornaca, um secretário de Estado e claro, Salomão.
Nesse livro Saramago mostra bem os bastidores do poder dos reinos do século XVI, seus caprichos e o descaso com o povo, fazendo prevalecer sua vontade custe o que custar. Ao passo em que a caravana portuguesa se dirige para Valladolid na Espanha, pois Maximiliano estava lá de férias, vários personagens vão aparecendo e sumindo, sem retornar à narrativa, como em uma peça de teatro. Sendo assim, o principal personagem é o próprio elefante, Salomão, que depois que é dado oficialmente ao Arquiduque, passa a se chamar Solimão.
No decorrer da narrativa, Saramago em vários momentos ironiza o papel da igreja católica e da beatice, tão peculiar, de Portugal. Através de um narrador onisciente que não participou dos acontecimentos narrados, Saramago aponta algumas das mazelas da condição humana, como a vaidade, sede pelo poder, autoritarismo, enfim, várias características da realeza. Um fato muito interessante na construção da narrativa, é a metalinguagem, que é aqui algo claramente assumido pelo narrador, que em várias passagens admite estar escrevendo um livro, ou estar produzindo um relato e se denomina como romancista. Saramago ainda consegue, aos 86 anos de idade, inovar seu estilo.
Mesmo A Viagem do Elefante não tendo a mesma força narrativa, imagética e mimética de Levantado do Chão, é um livro forte, digno do velho Saramago de Memorial do Convento e de A Jangada de Pedra. Um dos nomes mais expressivos da literatura portuguesa contemporânea, com certeza. Um escritor que está muito acima de falsos estereótipos e de premiações que ainda é, mesmo na repetição de um estilo que o consagrou, capaz de ser inovador.
Enquanto grandes livros de grandes autores são esquecidos ou apenas lidos dentro dos meios acadêmicos, outros vendem como qualquer material artístico pop. Temos aí o exemplo de Paulo Coelho, Sidney Sheldon, Danielle Steel e outros. Normalmente o que vende muito não é muito bem visto por acadêmicos, salvo exceções. José Saramago é um desses casos, que além de vender muito bem, pois sempre que publica um novo livro, já entra diretamente para a lista de mais vendidos, é um grande escritor.
Caso raro na literatura, Saramago agrada tanto acadêmicos quanto leigos, fato que se torna um impasse muitas vezes, pois, ao passo em que o escritor torna-se cada vez mais conhecido e popular, a academia passa e rejeitá-lo. Há uma relação de amor e ódio entre Saramago e a academia, fato muito interessante, um fenômeno inusitado. Portanto, discorrerei aqui sobre dois livros seus que chamam a atenção. O primeiro é Levantado do Chão (1979), seu primeiro grande romance, e A Viagem do Elefante (2008), seu mais recente trabalho publicado.
Levantado do Chão narra a trajetória, repleta de percalços, da família Mau-Tempo, durante um século. Desde o final do século XIX até os conturbados acontecimentos pré e pós o 25 de abril. O romance apresenta um enredo linear, sem grandes complicações formais, com a exceção de que é nesse livro que Saramago, pela primeira vez, descarta o uso de pontos, travessões e outras indicações de diálogos. Saramago pratica frequentemente em Levantado do Chão o discurso indireto livre.
Saramago pratica nessa obra uma espécie de Neo-Realismo tardio, pois escreve sobre trabalhadores rurais do Alentejo que lutam contra um sistema capitalista opressor. Tardio porque o movimento neo-realista teve seu auge nas décadas de 40 e 50, e depois deu espaço a outros movimentos não necessariamente engajados como era o Neo-Realismo. Saramago recupera esse engajamento nessa obra, porém, é através da forma que Levantado do Chão se diferencia das outras, da força das imagens rurais, da violência descrita de forma tão real e poética.
Conforme os anos vão passando, os membros da família Mau-Tempo vão se mostrando incapazes de mudarem a situação de família oprimida de trabalhadores rurais. Eles são representantes de todas as famílias do Alentejo, miseráveis e oprimidos pela ditadura e pelo trabalho em condições sub-humanas. Esse livro é um grito de liberdade contra o abuso do poder. O título é muito significativo, pois representa a situação do trabalhador alentejano, que ao mesmo tempo em que encontra o seu sustento na terra, essa é seu algoz, cruel e impiedosa. O levantado tanto pode significar o homem que surge da terra, ou seja, sobrevive através dela (a terra como apoio), quanto a sociedade que o oprime, pois o homem é levantado à força e jogado à terra novamente quando chega sua hora. É um título muito bem construido, como o é todo o romance. Suas imagens das montanhas, dos temporais que devastam as plantações, das vilas e dos curiosos tipos que surgem no decorrer de um século fazem de Levantado do Chão um grande romance sobre o Alentejo, no qual não há personagens principais, é um drama coletivo, ao tipo de Alves Redol. É um hino à vida.
O último romance de Saramago, A Viagem do Elefante (2008) narra o périplo de Salomão, um elefante que é oferecido como presente de Dom João III a Maximiliano II, Arquiduque da Áustria. E para executar tal tarefa, é montada uma caravana com mais de 30 soldados do reino de D. João, um cornaca, um secretário de Estado e claro, Salomão.
Nesse livro Saramago mostra bem os bastidores do poder dos reinos do século XVI, seus caprichos e o descaso com o povo, fazendo prevalecer sua vontade custe o que custar. Ao passo em que a caravana portuguesa se dirige para Valladolid na Espanha, pois Maximiliano estava lá de férias, vários personagens vão aparecendo e sumindo, sem retornar à narrativa, como em uma peça de teatro. Sendo assim, o principal personagem é o próprio elefante, Salomão, que depois que é dado oficialmente ao Arquiduque, passa a se chamar Solimão.
No decorrer da narrativa, Saramago em vários momentos ironiza o papel da igreja católica e da beatice, tão peculiar, de Portugal. Através de um narrador onisciente que não participou dos acontecimentos narrados, Saramago aponta algumas das mazelas da condição humana, como a vaidade, sede pelo poder, autoritarismo, enfim, várias características da realeza. Um fato muito interessante na construção da narrativa, é a metalinguagem, que é aqui algo claramente assumido pelo narrador, que em várias passagens admite estar escrevendo um livro, ou estar produzindo um relato e se denomina como romancista. Saramago ainda consegue, aos 86 anos de idade, inovar seu estilo.
Mesmo A Viagem do Elefante não tendo a mesma força narrativa, imagética e mimética de Levantado do Chão, é um livro forte, digno do velho Saramago de Memorial do Convento e de A Jangada de Pedra. Um dos nomes mais expressivos da literatura portuguesa contemporânea, com certeza. Um escritor que está muito acima de falsos estereótipos e de premiações que ainda é, mesmo na repetição de um estilo que o consagrou, capaz de ser inovador.
4 comentários:
Olá, Daniel, tudo bem? Deixei um comentário em um de seus textos sobre os livros do Mainardi, você chegou a ver? Quando puder, por favor, entre em contato comigo (rafaelnikov@gmail.com), gostaria de republicar seus textos sobre os romances do Mainardi no Digestivo Cultural. Att., Rafael
Com todo prazer, Rafael. Pode publicá-los. Um grande abraço.
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