domingo, 25 de abril de 2010

NENHUM OLHAR: A PASSAGEM DO TEMPO EM UM ALENTEJO MÍTICO


O Alentejo, região ao sul de Portugal, foi cenário de inúmeras obras da literatura portuguesa, principalmente de autores vinculados ao Neo-Realismo. O Alentejo simbolizava durante o Neo-Realismo a classe trabalhadora, oprimida e ignorante que vivia longe das cidades, e tornou-se um microcosmo de todo o Portugal salazarista opressor.

As belas paisagens rurais descritas por Manuel da Fonseca nos contos de Aldeia Nova,descritas por Fernando Namora em O Trigo e o Joio criaram uma atmosfera maniqueísta que nos dramas retratados nas obras não encontravam a mesma beleza descrita acerca do espaço. Portanto, havia um interesse muito claro entre os autores neo-realistas em retratar o Alentejo como espaço ideal, belo, mas opressor e pertencente sempre ao mais forte. Temática que ficou até certo ponto batida, estereotipada e em alguns casos panfletária, mas permaneceu forte até seus derradeiros dias do movimento.

Esse espaço surreal e mítico não se restringe apenas aos neo-realistas dos anos 40 e 50, mas há autores mais recentes que passaram a publicar a parir do ano 2000 em diante que também se utilizaram do Alentejo para cenário de suas narrativas. Um desses autores é José Luís Peixoto, já premiado e traduzido para alguns países da Europa, como Espanha e França.

José Luís Peixoto nasceu em 1974, em Galveias, concelho de Ponte de Sôr. Muito cedo venceu o prêmio Jovens Criadores do Instituto Português da Juventude em 1998. É autor dos romances Morreste-me (2000), Uma casa na escuridão (2002) e da novela Antídoto (2003). Seu romance publicado no Brasil, Nenhum Olhar (2001) foi vencedor do Prêmio Saramago 2001, na categoria de melhor livro de ficção.

Nenhum Olhar é uma breve narrativa que tem como cenário o Alentejo, mas a atmosfera criada por José Luís Peixoto nesse livro é muito diferente do que faziam os neo-realistas. Nesse romance há muitos elementos do Realismo Fantástico (ou Realismo Mágico) famosa vertente literária nos anos 60 e 70 por abordar temáticas sociais por meio de metáforas e símbolos. O autor de Nenhum Olhar não desenvolve em momento algum críticas de tendências panfletárias, nem levanta bandeiras políticas, simplesmente faz literatura, ficção da mais alta qualidade.

O romance não narra uma única história individual, mas traça um painel de uma aldeia perdida no tempo e no espaço. É um ambiente rural, ermo e castigado pelo sol, e essa dureza física e geográfica se reflete nas personagens que participam da trama. O enredo tem início enfocando o drama particular de José, um pastor de ovelhas que depois de um dia estafante de trabalho entra na venda do Judas para tomar "trago de vinho tinto", e quem ele encontra servindo no balcão é o próprio demônio. O Demônio na narrativa tem uma participação enigmática, pois ao mesmo tempo em que planta sua "semente" da discórdia na mente de José, também age como humano, convive entre os homens, realiza os casamentos da vila e participa da vida social ativamente.

José é casado com uma bela e jovem mulher que é subjugada sexualmente por uma outra figura enigmática, o gigante. O tempo todo José é avisado pelo demônio que sua mulher não é quem ele pensa ser.

O demônio sorria. Sorrindo, perguntou como estás, onde está tua mulher que não a tenho visto? (...) Sabes, continuou enquanto sorria, disse-me o gigante que a conhece mais que tu, que sabe melhor e com mais certeza onde ela anda, onde ela está. Da lonjura branca da sua aura de álcool, José parou para entender (p.8 e p. 9)

Esse fragmento mostra claramente que a intenção do demônio não é alertar José por bondade sua, porque se compadece com seu sofrimento, mas simplesmente para causar a discórdia entre os homens, e um dos homens aqui é simbolizado pela figura do gigante. A metáfora que José Luís Peixoto desenvolve aqui é sobre a própria relação entre os seres humanos, repleta de traição, tentação, morte e desgraça. Com o tempo José passa a ser perseguido e torturado pelo gigante, que o jura de morte. Esse primeiro grande drama da narrativa termina tragicamente com o suicídio de José, pois avisado pelo demônio que sua mulher estava dormindo com o gigante, corre para casa para comprovar suas palavras, e chegando em casa, pela janela aberta de seu quarto, vê sua mulher sendo estuprada pelo gigante. Ambos se olham e José percebe naquele olhar da esposa que não havia como fugir, como escapar do jugo do mais forte.

E o tempo dos passos era longo de envelhecer muitas vezes, mas os passos, depois de serem dados, na lembrança, eram breves e pouco reais. Inclinou-se, e as portadas estavam abertas, e havia uma nesga por entre as cortinas. E a mulher estava debaixo do gigante. José sentiu-se morrer estando morto, e sentiu-se morrer e morrer, e a mulher estava debaixo do gigante. O menino dormia no berço. E havia uma noite muito escura, que era uma caixa ou um saco, onde José estava fechado, e onde lhe faltava o ar, onde já tinha morrido e só esperava perder o último sopro frágil de vontade (p. 94)

Toda a narrativa é fragmentada. Ora é narrada por José, ora por sua esposa, ora pela cozinheira, ora pelos irmãos siameses, Elias e Moisés, ora pelo velho Gabriel e ora por um narrador em terceira pessoa, onisciente que não participa dos fatos narrados. Os acontecimentos descritos até a morte de José serve de marcação para a primeira parte da narrativa, e depois do suicídio do pastor, abruptamente, passam-se 30 anos. É interessante ressaltar aqui a passagem do tempo, que consome ferozmente todas as pessoas, sem exceção. A voz do velho Gabriel durante toda a narrativa parece ser o prenúncio de uma tragédia, o prenúncio de uma catástrofe prestes a atingir a todos.

Há outros dramas tão importantes quanto o de José na narrativa, como o trágico fim dos irmãos Elias e Moisés, siameses. Um deles casa-se com a cozinheira, que não é nomeada aqui, e já numa idade muito avançada têm uma filha que mais tarde vem a se apaixonar pelo filho do pastor suicida, também chamado José. Mas a filha da cozinheira já era casada com Salomão, um primo de José, e aqui tem início mais um drama no qual o demônio participa ativamente, fazendo com Salomão o mesmo que fizera com o pastor José há trinta anos.

Percebe-se durante a leitura do romance uma certa aproximação de José Luís Peixoto com dois escritores em particular, um deles é José Saramago, pela estruturação linguística apurada, sem indicação de diálogos com travessões e pontuação própria; o outro é Gabriel Garcia Marquez, pela narrativa que passa através do tempo e o tempo, que aqui assume um papel fundamental, é o algoz cruel de todos que passam por ele.

Nenhum Olhar impressiona por ter sido escrito por um escritor relativamente jovem, pelo menos jovem ao ponto de ter escrito um livro tão maduro, consistente, elogiado pelo próprio José Saramago. Os personagens são tragados literalmente pela terra, e aqui volta-se à questão da escolha do Alentejo (mesmo não nomeado, percebe-se que trata-se do Alentejo) como cenário do romance, pois sendo um ambiente em grande parte rural, seus personagens vivem da terra, e também é essa mesma terra, esse chão que sustenta, que mata e causa sofrimento. É uma bela metáfora sobre vida, morte e tempo. E o romance se encerra com o fim de tudo, como acontece em Cem Anos de Solidão.

E o mundo acabou. Inexplicavelmente, ou sem uma explicação que possa ser dita e entendida. O mundo acabou, como num instante em que se fechassem os olhos e não se visse sequer o que se vê com os olhos fechados. As crianças morreram, os risos das crianças, espalhadas no sol e nos sábados e em agosto, morreram (...) O mundo acabou. E não ficou nada. Nem as certezas. Nem as sombras. Nem as cinzas. Nem os gestos. Nem as palavras. Nem o amor. Nem o lume. Nem o céu. Nem os caminhos. Nem o passado. Nem as ideias. Nem o fumo. O mundo acabou. E não ficou nada. Nenhum sorriso. Nenhum pensamento. Nenhuma esperança. Nenhum consolo. Nenhum olhar (p. 190 e p. 191).

Há uma poesia que percorre todo o livro de José Luís Peixoto, o que acaba tornando sua linguagem mais simbólica, até certo ponto etérea, cristalina. Esse fragmento é o parágrafo que encerra o romance, e assim como se iniciou, se desenvolveu sem respostas, também se concluiu sem respostas, e esse é um fator fundamental que faz de Nenhum Olhar um grande romance com grandes questionamentos, e sem nenhuma resposta.

7 comentários:

RoPensO disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
RoPensO disse...

AÊ PROFESSOR! =D mandando ver ein! ;)
parabéns pelo "brog"!
abraços!

Daniel Osiecki disse...

Olá. Cara, quem é você? De qual turma? Um abraço.

Eduh Soares disse...

Oi professor, essa pessoa ae é o Rodolfo... lá da sala mesmo! ^^
Seu blog é muito legal, eu to tentando criar um meu... se puder, visita lá? valeeu!

Daniel Osiecki disse...

Opa, Eduardo. Com certeza. Já falei como Rodolfo. Com certeza visitarei o seu blog, sim. Grande abraço.

fabio santos disse...

De fato, "Nenhum Olhar" induz o leitor a inúmeras perguntas, deixando a curiosidade desperta durante todas as suas páginas. Ao final do livro confirmei a proximidade com Garcia Marquez, visto que o desfecho assemelha-se com o fim de "Cem anos de solidão". Gostei muito da sua análise professor, parabéns pela resenha.

graça disse...

Acabei de ler o "Nenhum olhar" hoje e li-o de uma vez só.. Não consegui parar e não quis parar para não sair daquele universo... Fiquei encantada e angustiada e ao ler o seu comentário fiz minhas as suas palavras..E sim.. Gabriel Garcia Garques está presente... Muito bom o seu comentário!