Enquanto grandes livros de grandes autores são esquecidos ou apenas lidos dentro dos meios acadêmicos, outros vendem como qualquer material artístico pop. Temos aí o exemplo de Paulo Coelho, Sidney Sheldon, Danielle Steel e outros. Normalmente o que vende muito não é muito bem visto por acadêmicos, salvo exceções. José Saramago é um desses casos, que além de vender muito bem, pois sempre que publica um novo livro, já entra diretamente para a lista de mais vendidos, é um grande escritor.
Caso raro na literatura, Saramago agrada tanto acadêmicos quanto leigos, fato que se torna um impasse muitas vezes, pois, ao passo em que o escritor torna-se cada vez mais conhecido e popular, a academia passa e rejeitá-lo. Há uma relação de amor e ódio entre Saramago e a academia, fato muito interessante, um fenômeno inusitado. Portanto, discorrerei aqui sobre dois livros seus que chamam a atenção. O primeiro é Levantado do Chão (1979), seu primeiro grande romance, e A Viagem do Elefante (2008), seu mais recente trabalho publicado.
Levantado do Chão narra a trajetória, repleta de percalços, da família Mau-Tempo, durante um século. Desde o final do século XIX até os conturbados acontecimentos pré e pós o 25 de abril. O romance apresenta um enredo linear, sem grandes complicações formais, com a exceção de que é nesse livro que Saramago, pela primeira vez, descarta o uso de pontos, travessões e outras indicações de diálogos. Saramago pratica frequentemente em Levantado do Chão o discurso indireto livre.
Saramago pratica nessa obra uma espécie de Neo-Realismo tardio, pois escreve sobre trabalhadores rurais do Alentejo que lutam contra um sistema capitalista opressor. Tardio porque o movimento neo-realista teve seu auge nas décadas de 40 e 50, e depois deu espaço a outros movimentos não necessariamente engajados como era o Neo-Realismo. Saramago recupera esse engajamento nessa obra, porém, é através da forma que Levantado do Chão se diferencia das outras, da força das imagens rurais, da violência descrita de forma tão real e poética.
Conforme os anos vão passando, os membros da família Mau-Tempo vão se mostrando incapazes de mudarem a situação de família oprimida de trabalhadores rurais. Eles são representantes de todas as famílias do Alentejo, miseráveis e oprimidos pela ditadura e pelo trabalho em condições sub-humanas. Esse livro é um grito de liberdade contra o abuso do poder. O título é muito significativo, pois representa a situação do trabalhador alentejano, que ao mesmo tempo em que encontra o seu sustento na terra, essa é seu algoz, cruel e impiedosa. O levantado tanto pode significar o homem que surge da terra, ou seja, sobrevive através dela (a terra como apoio), quanto a sociedade que o oprime, pois o homem é levantado à força e jogado à terra novamente quando chega sua hora. É um título muito bem construido, como o é todo o romance. Suas imagens das montanhas, dos temporais que devastam as plantações, das vilas e dos curiosos tipos que surgem no decorrer de um século fazem de Levantado do Chão um grande romance sobre o Alentejo, no qual não há personagens principais, é um drama coletivo, ao tipo de Alves Redol. É um hino à vida.
O último romance de Saramago, A Viagem do Elefante (2008) narra o périplo de Salomão, um elefante que é oferecido como presente de Dom João III a Maximiliano II, Arquiduque da Áustria. E para executar tal tarefa, é montada uma caravana com mais de 30 soldados do reino de D. João, um cornaca, um secretário de Estado e claro, Salomão.
Nesse livro Saramago mostra bem os bastidores do poder dos reinos do século XVI, seus caprichos e o descaso com o povo, fazendo prevalecer sua vontade custe o que custar. Ao passo em que a caravana portuguesa se dirige para Valladolid na Espanha, pois Maximiliano estava lá de férias, vários personagens vão aparecendo e sumindo, sem retornar à narrativa, como em uma peça de teatro. Sendo assim, o principal personagem é o próprio elefante, Salomão, que depois que é dado oficialmente ao Arquiduque, passa a se chamar Solimão.
No decorrer da narrativa, Saramago em vários momentos ironiza o papel da igreja católica e da beatice, tão peculiar, de Portugal. Através de um narrador onisciente que não participou dos acontecimentos narrados, Saramago aponta algumas das mazelas da condição humana, como a vaidade, sede pelo poder, autoritarismo, enfim, várias características da realeza. Um fato muito interessante na construção da narrativa, é a metalinguagem, que é aqui algo claramente assumido pelo narrador, que em várias passagens admite estar escrevendo um livro, ou estar produzindo um relato e se denomina como romancista. Saramago ainda consegue, aos 86 anos de idade, inovar seu estilo.
Mesmo A Viagem do Elefante não tendo a mesma força narrativa, imagética e mimética de Levantado do Chão, é um livro forte, digno do velho Saramago de Memorial do Convento e de A Jangada de Pedra. Um dos nomes mais expressivos da literatura portuguesa contemporânea, com certeza. Um escritor que está muito acima de falsos estereótipos e de premiações que ainda é, mesmo na repetição de um estilo que o consagrou, capaz de ser inovador.