Os narradores bíblicos ficaram conhecidos pela incrível capacidade de síntese, de dizer o estritamente necessário em poucas linhas. Porém, muitas vezes, como ocorre em muitos livros do Antigo Testamento, as informações descritas carecem de detalhes, deixando o leitor, assim, apto a imaginar conclusões que ficaram para trás.
Alguns escritores de origem judaica como Isaac Bashevis Singer, Scholem Aleichem, Joseph Heller, Saul Bellow e o brasileiro Moacyr Scliar, praticamente um caso isolado na literatuira brasileira, incorporaram em suas narrativas e em seus estilos literários esses elementos dos narradores bíblicos, e por isso se tornaram famosos contadores de histórias.
Scliar, filho de imigrantes judeus russos, desde muito cedo esteve ligado à comunidade judaica de Porto Alegre, fato que lhe proporcionou incorporar em seu estilo literário, elementos dos narradores judeus do leste europeu, norte-americanos e muito dos narradores bíblicos. Porém, deve-se ter em mente que a influência herdada por Scliar não se resume à religião, muito pelo contrário, pois Moacyr não é religioso. O que ele incorporou em seu estilo foi a cultura judaica passada de geração para geração, o ato de contar histórias com uma precisão singular e claro, com uma leveza e fluência que também se encontram na Torá.
Mesmo tendo aproveitado em vários de seus romances e contos a temática judaica, sua obra não se resume aos temas bíblicos e nem ao universo judaico, tendo depois dos primeiros romances, explorado terrenos concernentes à política, à repressão e a embates relacionados à identidade, judaica ou não. Em alguns romances, Scliar praticou o que se convencionou chamar de romance histórico, como nos livros O Ciclo das Águas (1975) e Sonhos Tropicais (1992).
Em seu mais recente romance, Manual da Paixão Solitária (2008), Scliar faz uma releitura do capítulo 38 do primeiro livro da Torá, Gênesis. Esse capítulo conta, apenas em embrião, a história do patriarca Judá e de seus três filhos: Er, Onan e Shelá. Para se casar com Er, seu primogênito, Judá encontrara Tamar, bela mulher filha de um importante sacerdote. O casamento se realiza, mas Er, por motivos obscuros, não engravida Tamar e misteriosamente morre por desígnios do Senhor.
Pelas leis da tribo, se o primogênito não deixou filhos, o filho seguinte tem a obrigação de engravidar a viúva do irmão (é a lei do Levirato), mas o filho que nascer não será considerado seu, mas do primogênito morto, que por sua vez, terá direito à herança e ao patriarcado. É a lei ancestral do povo, a qual mostra-se muito mais forte do que qualquer desejo ou vontade própria.
É a partir dessa misteriosa e conflituosa passagem bíblica que Scliar constrói a narrativa de Manual da Paixão Solitária. No romance, Scliar desenvolve três narradores distintos. Um dos narradores é Shelá, que ganha voz através do Professor Haroldo Veiga de Assis num encontro de Estudos Bíblicos. Em um texto dramático o famoso professor realiza a sua fala, repleto de lances polêmicos que não são descritos no Antigo Testamento, como a homessexualidade de Er, e a sua consequente punição.
A outra voz da narrativa é a de Tamar, a mulher que se envolveu com o patriarca e com seus três filhos. Nessa segunda parte do romance, quem dá voz à bela Tamar é a Professora Diana Medeiros, uma antiga aluna do professor Haroldo e sua rival acadêmica. A voz de Tamar aparece na segunda metade do romance, e as duas narrativas são intermediadas por um terceiro narrador (em terceira pessoa), esse onisciente e onipresente, que explica os fatos que serão descritos a seguir, em um encontro de estudiosos da bíblia. Esse terceiro narrador, que aparece na narrativa grafado em itálico, serve unicamente para indicar de quem são as vozes dos outros narradores.
Um fato interessante nesse romance é que as vozes do professor Haroldo, da professora Diana, de Shelá e Tamar se cruzam e se confundem, e assim, acabam, intencionalmente ou não, criando mais focos narrativos. Porque ao passo em que o professor Haroldo dá voz a Shelá há 3 mil anos atrás, ele, o professor também narra, pois o texto é narrado em primeira pessoa. Com a professora Diana acontece o mesmo, pois no texto em que ela dá voz à Tamar, também é narrado em primeira pessoa. E dessa forma Scliar dá margem a vôos narrativos longínquos e incríveis.
Os acontecimentos descritos, tanto por Shelá e Tamar refletem na própria personalidade dos narradores contemporâneos ( Haroldo e Diana), pois Shelá segue as tradições de seu povo sem muitos questionamentos; Tamar é uma mulher muito a frente de seu tempo, uma revolucionária, uma espécie de precursora do feminismo, pois através de seu estratagema (engravidar de seu próprio sogro para não perder sua herança) alcança sua redenção.
É mais uma vez que Moacyr retoma um relato bíblico e faz de sua narrativa baseada na Torá um grande romance. Scliar estava devendo um grande romance desde 2006, quando publicou Os Vendilhões do Templo e não mostrou nesse livro, o grande escritor que sempre foi. Consegue isso agora com Manual da Paixão Solitária, narrativa instigante que reflete sobre vários assuntos que podem ser trazidos para os dias de hoje. É uma narrativa sobre personagens do Antigo Testamento que é muito atual, e claro, não deixa de apresentar o velho humor de Scliar em todo o romance, construindo assim momentos memoráveis ao longo de toda narrativa.
Scliar faz nesse romance uma junção magistral de elementos da antiguidade (personagens e acontecimentos do Antigo Testamento) com elementos da modernidade (pós-modernidade), como a narrativa fragmentada e a polifonia. Romance digno de um grande narrador. Também, por sua vez, digno dos grandes narradores da Torá, pois mostra-se, em muitos sentidos, seu maior herdeiro.
4 comentários:
Daniel
O Moacyr não é mais um caso isolado na literatura brasileira, de um escritor que incorpora elementos da cultura judaica.
O jovem Rafael Ban Jacobsen, faz o mesmo em seu "Uma Leve Simetria", que tem prefácio do próprio Scliar.
Também lembro que em concurso literário em Porto Alegre, Rafael, com o romance "Solenar" desbancou Moacyr Scliar.
Cjgalvão,
Scliar é, de fato, um caso isolado na literatura brasileira.Salvo Samuel Rawett e alguns outros por aí. O Jacobsen segue uma linha interessante, mas se diferencia muito de Scliar em relação à cultura judaica, por isso nem o citei. Scliar segue mais uma linha messiânica, o Jacobsen me parece mais secular. E concursos literários nada significam. Veja o último Prêmio Jabuti, do qual Scliar foi ganhador, um concorrente seu foi Daniel Galera, que é um escritor muito fraco, nada comparado a Scliar.Mas é isso aí.Até!!
Gostei muito da sua resenha sobre o livro de Moacyr Scliar. Adoro os seus livros, principalmente pela maneira como ele escreve, proporcionando uma leitura leve e prazerosa. Pena que ele tenha partido tão cedo. Felizmente nos deixou um grande número de obras para apreciar.
Um abraço,
Rô
Acabei de ler o livro e procurava outras opiniões e encontrei o seu blog, um especialista em literatura, fazendo ums resenha compreensivel, clara aos apenas leitores como eu.
O livro é realmente interessante, Moacir traz no desenvolvimento da história muito da herança que as culturas judaica cristão trouxeram para a nosssa vida sexual e afetiva.
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