segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Sob a égide do tempo



Raduan Nassar, autor singular, conseguiu atingir com Lavoura Arcaica o ponto máximo de sua produção e um dos momentos mais importantes na história da literatura brasileira. No romance nos deparamos com um enredo intrincado, denso e tenso, o que é fruto da própria linguagem utilizada por Nassar, muito próxima do que se convencionou chamar de “prosa poética”.

Raduan faz da confusão mental em que seu protagonista – narrador se encontra a construção de uma narração repleta de implicações formais prolixas e inteligentes, próprio dos grandes autores. Portanto, ao mesmo tempo em que nos deparamos com um enredo repleto por significados poéticos e metáforas, nos deparamos também com a construção de uma linguagem poética muito incomum, que não chega ao experimentalismo, mas sim a um estranhamento formal.

André, o protagonista – narrador, durante toda sua narrativa, não assume em sua fala um tom de diálogo, mas sim um tom de confissão em um emaranhado de palavras torpes e delírios. Muito de sua confusão deve-se ao fato da embriaguez em que ele se encontra, quando nos primeiros capítulos do romance André bebe vinho com seu irmão Pedro:

“É o meu delírio, Pedro, é o meu delírio, se você quer saber" (...) mas isso só foi um passar pela cabeça um tanto tumultuado que me fez virar o copo em dois goles rápidos, e eu que achava inútil dizer fosse o que fosse passei a ouvir. (p. 18)

Um fato importante em Lavoura Arcaica que temos de levar em consideração é o foco narrativo assumido por André, que está relacionado com o encadeamento dos tempos no romance, e que se apresentam sobrepostos. Em primeiro lugar há o tempo da narração, ou seja, André está longe do que narra, tempos depois, já amadurecido. Em segundo lugar há o tempo do reencontro com Pedro, seu irmão que vai buscá-lo no quarto de pensão, e que se evoca, na confissão do relato do narrador, o tempo anterior à partida e seus motivos. Porém, há de se levar em consideração aqui a existência de um terceiro tempo na narrativa, pois, as confissões de André ao seu irmão Pedro sobre os fatos ocorridos na fazenda antes de sua partida, são lembranças do André que está no quarto de pensão com seu irmão mais velho, ou do André distante no tempo e no espaço, o narrador? Essa ocorrência da sobreposição dos tempos é de extrema importância para a compreensão da narrativa.


Durante o relato de André, notamos que os espaços nos quais ele viveu, seja na fazenda, na pensão, na cidade, exerceram influência direta sobre ele. Primeiramente são os espaços da fazenda que André rememora, os quais representam para ele as origens, as raízes. A fazenda representa valores complexos e variados e seu abandono é um dos centros do enredo. Mas ao mesmo tempo em que a fazenda representa suas origens, representa também o impacto dos valores do pai, o espaço da ordem, da censura, do trabalho.

Os espaços internos da fazenda, como o quarto, a cozinha, a igreja, estão relacionados ao que representam a mãe e Ana, um misto de erotismo e espiritualidade. São espaços de repressão onde André encontra o lado oculto da família, o lado escuro, que se guarda como pecado e perversão. Outro espaço interno importante é o da sala de jantar, com sua mesa comparada a uma árvore de onde surgissem ramos sãos, à direita do patriarca, e ramos doentios, à esquerda:

O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto... (p. 156 -57)

No enredo percebemos uma clara alusão à parábola do filho pródigo e a algumas sentenças do Alcorão (“Vos são interditadas: vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs”). Porém, o comportamento de André é uma perversão da parábola bíblica levada a um extremo. Nas confusas palavras de André há a tentativa de perversão do discurso do pai e de seu significado e a isso se acrescenta a relação edipiana com a mãe.

Indo contra a prédica do pai e do Alcorão, André mantém uma relação incestuosa com Ana, símbolo do mistério e de uma descoberta trágica. Há um impasse em relação à Ana que se estabelece em virtude do impossível de qualquer defesa desse amor (“que culpa temos nós desse fruto da infância?”) o que coloca o tema da solidão do indivíduo em face do seu destino, sempre maior ou mais forte do que o desejo pessoal.

Lavoura Arcaica é um romance denso, pungente e talvez possamos classificá-lo como um romance ensaio. Algo interessante a observar nesse livro, é que ele narra um drama universal e atemporal, ou seja, o drama de André constitui-se perdido no tempo e no espaço. O tempo nessa obra, a concepção de tempo (ou de tempos), é um fator de extrema importância e significado, o que torna a narrativa, conforme seu desenvolvimento, mais introspectiva e poética através da construção de uma linguagem incrivelmente bem elaborada e de um universo trágico de estranha beleza.