terça-feira, 23 de setembro de 2008

OSTRACISMO LITERÁRIO II: na diocese anti-nacionalista nonsense


Muito do que se faz e do que se fala hoje no Brasil, e muito no âmbito cultural, é pura retórica nacionalista, como se tudo fosse sublime só porque “temos que exaltar o que é nosso”. A maior parte das idéias prontas que tanto atalhufam as academias brasileiras são desse tipo. De Gilberto Freyre a Antonio Quartin de Morais. Como diria Paulo Francis, “um bando de comunistas limonada”.

Depois de algumas semanas volto a falar aqui no blog sobre Diogo Mainardi. Da primeira vez analisei seus dois primeiros romances, Malthus (1989) e Arquipélago (1992). Neste texto analisarei os dois últimos, Polígono das Secas (1995) e Contra o Brasil (1998), o melhor dos quatro. Mas, voltando ao ufanismo hipócrita e idiota que definha o nível intelectual dos acadêmicos brasileiros, Diogo Mainardi, com seu terceiro romance, Polígono das Secas, desfere golpes ferozes contra o imaginário nacional tão difundido e idealizado pala literatura regionalista. Como “o povo nordestino é batalhador, sofrido e heróico”. Para Diogo, a travessia de Riobaldo pelo sertão mineiro é tratada por todos como se fosse algo próximo às cruzadas. A pobreza é venerada na literatura nacional.

O leitmotiv de Polígono das Secas, e também de Contra o Brasil, é a derrocada de quase todas as teorias e colocações lisonjeiras acerca do Brasil, e o autor quer defender a tese de que tais teorias, ditados e pensamentos não passam de lugares comuns e de clichês nacionalistas estúpidos.

Em Polígono das Secas, um serial killer atravessa o polígono das secas no nordeste brasileiro espalhando por onde passa seu veneno, com o intuito de exterminar todas as mulheres com o nome de Catarina Rosa. Ao longo de sua jornada, o untor (como é denominado por Mainardi), se depara com vários tipos conhecidos na literatura regionalista nordestina, como o retirante que busca melhores condições na cidade grande; o pai que carrega o filho morto nos braços em busca de um enterro decente; o político corrupto e autoritário que manda matar seus oponentes; o pistoleiro que mata por dinheiro. Todas essas figuras são mostradas na literatura brasileira de forma idealizada.

Mainardi em sua narrativa, além de desmistificar esses estereótipos, zomba de tais figuras, transformando o pai que carrega o filho morto pelo sertão de um pobre herói sofredor em um interesseiro que vende o corpo do filho para o assassino, pois o untor retira parte de seu unto venenoso da saliva de moribundos. (Seria isso uma ironia às nossas comodities?). Transforma o mesmo personagem, que se chama Manoel Vitorino, de um solícito cidadão brasileiro que iria enterrar Catarina Rosa, em um necrófilo sem escrúpulos que vai agindo por todo o sertão. E dessa maneira os mitos vão sendo desmascarados por Diogo Mainardi durante toda a narrativa. Também é interessante ressaltar que o narrador, em terceira pessoa, conforme os capítulos vão se sucedendo, vai manifestando sua opinião acerca da literatura nacional, como se fosse um Super Ego de Mainardi.

Os autores sertanejos tendem a atribuir um significado para cada evento da vida de seus personagens.

E é nessa mesma atmosfera nonsense de Polígono das Secas, que Mainardi cria Pimenta Bueno, protagonista de Contra o Brasil. Pimenta Bueno é um sujeito desprovido de qualquer boa intenção e com um repertório farto de impropérios contra o Brasil. Há nesse romance uma lista considerável de citações de vários autores e de personagens da história que estiveram no Brasil e desferiram violentos golpes verbais contra a pátria e o povo tupiniquim. Pimenta Bueno tem o trabalho apenas de citar esses autores (Claude Levi-Strauss, Charles Darwin, Evelyn Waugh), e de manifestar sua sórdida, para seus interlocutores, opinião.

É interessante quando Pimenta Bueno pergunta a qualquer um de seus interlocutores se conhece tal autor, a resposta é sempre a mesma: “não”. Diogo com isso zomba da ignorância dos brasileiros de um modo geral, com uma tristeza, certamente, mas com muito bom humor.

A trama de Contra o Brasil começa quando Pimenta Bueno, herdeiro de um cinema abandonado, agora lar de mendigos, ateia fogo à sua antiga propriedade e foge para o interior do Brasil. Chegando em Mato Grosso, decide realizar o mesmo trajeto feito por Strauss na década de 30, através da linha telegráfica do Marechal Rondon. O objetivo de Pimenta Bueno é chegar à tribo dos nambiquara, e é o que acontece. Mas o que ele encontra é bem diferente do que estava procurando. Ao invés de nambiquaras primitivos, como aqueles com os quais Strauss havia convivido e estudado, encontra uma tribo de índios assimilados e submissos, que se submetem a todo tipo de capricho e de canalhice impostas por Pimenta Bueno.

Nessa sua passagem pela tribo dos nambiquara, Pimenta Bueno pretende desenvolver a tese de que os brasileiros não têm identidade. Os índios nambiquara, que ele imaginava fossem os últimos índios ainda selvagens, já não o eram. Na tribo já havia várias das características comuns na sociedade civilizada, como a prostituição, corrupção, ignorância e promiscuidade. A tribo na qual Pimenta Bueno vive por algum tempo funciona como uma espécie de microcosmo do Brasil, com todas as suas deficiências e mazelas morais.

A diferença de um Pimenta Bueno para um Macunaíma, é que Pimenta Bueno, também herói sem caráter, não se esconde atrás de figuras nacionais feitas, ele mesmo procura, de forma direta, se auto destruir. Ele prova que todas suas imprecações contra o Brasil estão corretas, pois ao longo de sua jornada se depara com a ignorância, com a corrupção, com o comodismo do povo em geral, representado pelos mendigos do cinema, pelos índios e pelos parentes de sua mulher, Lavínia.

Um elemento interessante em Contra o Brasil, e que difere dos outros romances de Mainardi, é a sua forma. Todo o texto tem a forma de texto dramático. As falas dos personagens não são designadas por travessões, aspas ou pelo discurso indireto, mas pelo nome do personagem que fala. São rubricas que compõem todo o romance. O efeito que Diogo Mainardi buscou com essa forma curiosa foi a ironia. É mais um artifício que ele encontrou para zombar do leitor, como não podia ser diferente. Muito bem aproveitado por sinal, e que reforça ainda mais aquela atmosfera nonsense presente em toda narrativa e em seus outros romances.

Mais do que o narrador onisciente de Polígono das Secas, Pimenta Bueno parece ser de fato o Super Ego de Diogo Mainardi, mas só no que concerne às injúrias e difamações contra o Brasil e seus mitos ufanóides. De forma alguma em relação ao seu caráter. É uma pena que Diogo Mainardi tenha desistido da literatura. Prometeu nunca mais escrever sequer uma linha de ficção. Isso já faz dez anos. Mas esperemos que o seu Super Ego, Pimenta Bueno, o faça voltar atrás e simplesmente ignorar tudo o que disse. Afinal, Diogo também é brasileiro.

domingo, 21 de setembro de 2008

TÁVOLA REDONDA: uma homenagem a seus colaboradores


Jayme Ferreira Bueno*

Depois de mais de cinqüenta e oito anos, após o aparecimento, é viva a presença da revista Távola Redonda na memória de quem teve a felicidade de lê-la e estudá-la nos anos de 1980, quando ela ainda era novidade na crítica portuguesa e brasileira. Depois da publicação do trabalho Távola Redonda: uma experiência lírica, houve alguns encontros, mesmo no Brasil, mais especificamente em São Paulo para relembrar aqueles anos de poesia lírica em Portugal, que a revista teve o mérito de divulgar.

Na Casa de Mário de Andrade, no bairro da Barra Funda, na capital paulista, em 1989, quando a revista iria completar quarenta anos, compareceu grande parte dos poetas que fizeram a revista, com destaque para o fundador, David Mourão-Ferreira e um de seus diretores, Manuel Couto Viana. Foi uma comemoração que, no Brasil, realçou a importância daquelas Folhas de Poesia, publicadas em Lisboa no período de 1950 a 1954.

Apresentam-se a seguir exemplos da poesia que foi feita em Távola Redonda, naqueles anos de 1950, de intenso lirismo em uma literatura já lírica por excelência, como a que sempre se fez em Portugal.

1. DAVID MOURÃO-FERREIRA

O mais destacado dos poetas de Távola Redonda foi, sem dúvida, David Mourão-Ferreira, exatamente o idealizador, fundador e co-diretor da revista. Foi crítico de renome, escreveu sobre poesia, prosa e teatro, assim como produziu em todas essas áreas da literatura. Era poeta que conseguia manifestar conhecimento em seus poemas, para produzir uma poesia de intenso lirismo filtrado pela inteligência. Era, talvez, o único dessa geração que fazia uma poesia pensada, além de profundamente sentida, repleta de símbolos míticos, o que valorizava sobremodo toda a sua produção poética.

Na revista, David colaborou com textos críticos e notas explicativas. Sua intensa atividade como poeta fez que publicasse em Távola Redonda vinte e seis poemas, dos quais, em sua homenagem, aqui se reproduz este publicado no Fascículo 7, página 3:

A SECRETA VIAGEM

No barco sem ninguém, anónimo e vazio,

ficamos nós os dois, parados, de mão dada...

Como podem só dois governar um navio?

Melhor é desistir, e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,

tornamo-nos reais, e de madeira, à proa ...

Figuras de legenda... Olhos vagos, perdidos...

Por entre nossas mãos, o verde Mar se escoa...

Aparentes senhores dum barco abandonado,

nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...

Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado

Se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.

O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.

- Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,

a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!

2. ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA

Foi um dos diretores de Távola Redonda. Sempre esteve ao lado de David Mourão-Ferreira na redação e no planejamento da revista. Como poeta foi muito criticado por setores da crítica portuguesa, que não perdoava o seu intenso lirismo, principalmente por aqueles da revista de cunho realista, Árvore dirigida e orientada esteticamente por António Ramos Rosa.

A poesia de António Manuel Couto Viana é lírica, musical, voltada para o “eu”. A sua temática é tradicional e talvez aí residisse o motivo das críticas. Apresenta em seus poemas o drama da consciência do envelhecer, a busca da recuperação do tempo pela poesia e a aceitação da solidão como auto-flagelo por haver falhado no amor. A poesia era também uma espécie de escapismo em que busca o último refúgio.

Em sua homenagem, aqui se reproduz um poema que foi publicado no Fascículo 15, página 4:

POESIA

Com mão alada procuro

O emocional desenho puro:

A linha é frágil; o verso é duro.

A claridade dos cimos!

Por alcançar nos desmedimos:

Turvam a fonte os humanos limos.

Fique meu gesto suspenso

Com o branco sinal dum lenço

Por sobre o mundo nocturno e imenso.

3. FERNANDA BOTELHO

Távola Redonda teve o mérito também de incluir entre seus fundadores algumas poetisas, o que não era comum naqueles anos de 1950. Assim, Fernanda Botelho participou do primeiro grupo da revista, aquele que a idealizou e a fundou. Poetisa, romancista, novelista, contista e tradutora, Fernanda Botelho vem de uma tradicional estirpe de escritores portugueses. É sobrinha-neta do grande romancista do Naturalismo português Abel Botelho e é também aparentada do grande prosador do Romantismo Camilo Castelo Branco.

Uma das novidades da poesia de Fernanda Botelho é trazer para seus poemas o emprego de imagens geometrizantes. Apresenta também formas tradicionais, como as bailias, formas da tradição medievais e medievalizantes da poesia portuguesa, uma profunda ironia em seus versos e a temática do amor impossível. Uma outra sua característica marcante é a poesia metapoética, o que a eleva à altura dos principais poetas da literatura portuguesa.

Como homenagem à poetisa, transcreve-se o poema do Fascículo 10, página 1:

AS COORDENADAS LÍRICAS

Desviou-se o paralelo um quase nada

e tudo escureceu:

era luz disfarçada em madrugada

a luz que me envolveu.

A geométrica forma de meus passos

procura um mar redondo.

Levo comigo, dentro dos meus braços,

oculto, todo o mundo.

Sozinha já não vou. Apenas fujo

às negras emboscadas.

Em cada esfera desenho o meu refúgio

- as minhas coordenadas.

4. MARIA MANUELA COUTO VIANA

Maria Manuela Couto Viana é irmã do poeta António Manuel Couto Viana. Além de poética, ela publicou o romance Raízes que não secam (1942), com o qual concorreu e obteve o prêmio do concurso “procura um Romancista”. Dedica-se mais freqüentemente à poesia infantil, como autora e tradutora. Publica também sobre folclore.

A sua poesia apresenta tendências neo-esteticistas pelo emprego de formas fixas, como a ode e o soneto. Volta-se para os símbolos das histórias infantis e das crendices populares e também a expressão de desejos íntimos colocados num plano idealizado, o que tornam a sua poesia profundamente lírica e pessoal.

Aqui a poetisa é homenageada com um poema publicado no Fascículo 6, na página 2:

REVELAÇÃO

Senta-te à cabeceira,

Dá-me teus finos dedos,

Destrua-se a fronteira

Dos íntimos segredos.

Branca face lunar

A estranha face tua.

Vejo-me em teu olhar

Desamparada e nua.

Do que me queres dizer

Adivinho o sentido:

Como é triste morrer

Antes de ter vivido!

Nem carícia nem voz,

Só pálpebra tombada.

Já, para além de nós,

Se alonga a dura estrada...

Que aroma de aloés

Neste silêncio arde!...

Agora sei quem és,

Mas agora é tão tarde...


Távola Redonda se filiou à poesia lírica portuguesa tradicional. Inscreveu-se na tendência poética que provinha de A Águia, de parte de Orpheu e principalmente da Presença, da qual recebeu forte influência tanto na poesia, como na orientação estética daquela revista, que havia predominado na década de 30. Assim, ela se opôs à poesia de vanguarda, como, por exemplo, a surrealista, e, de certo modo, contestou a poesia de orientação socializante, como a do Neo-Realismo.

Procurou sempre manter-se conservadora e apolítica, como já fora a própria Presença. Preferiu, portanto, uma atitude de não-participação ativa no momento histórico, a não ser por uma espécie de ceticismo, que foi característica de grande parte da poesia da década de cinqüenta. Esse sentimento cético em relação aos destinos políticos do mundo, e em especial de Portugal, aliado a um ideário de índole subjetiva, levou a revista rumo a uma retomada do lirismo.

A posição que Távola Redonda assume, assim, um aparente descompromisso com o social, o que leva a sua produção poética a se voltar para um neo-esteticismo, a ponto de fazer da temá­tica da própria poesia uma de suas preocupações fundamentais. Como decorrência dessa retomada do lirismo e da preocupação estética, Távola Redonda teve o mérito de fazer renascer em Portugal a atmosfera poética, ausente em grande parte da poesia da década anterior.

Os exemplos reproduzidos neste texto demonstram em parte esse lirismo que se mostrava aparente em todos os Fascículos de Távola Redonda.


Jayme Ferreira Bueno* é professor de Literatura Portuguesa e publicou Távola Redonda: uma experiência lírica, que resultou da tese de doutorado em Letras na Universidade de São Paulo.