quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O OUTRO PÉ DA SEREIA: DO SEBASTIANISMO À DESILUSÃO PÓS-COLONIAL


A literatura africana pode ser considerada recente se pensarmos em produção de obras literárias por africanos e não por colonizadores. O primeiro livro publicado na África lusófona foi Espontaneidade da minha alma (1949), do escritor angolano José da Silva Maia Ferreira. Há de se levar em consideração o conceito de africanidade, que é a designação adotada pelos escritores africanos para referirem-se à África como sua mensagem ao mundo.

A literatura africana de expressão portuguesa inicia-se, basicamente, a partir do confronto, da tomada de uma consciência ideológica própria, de uma espécie de práxis revolucionária (não marxista) que através da conscientização do indivíduo africano torna-se independente. É uma literatura que pretende adquirir sua própria identidade e vai contra os moldes estéticos europeus.

Na literatura africana contemporânea há uma dicotomia muito clara, pois ao mesmo tempo em que há essa independência dos colonizadores portugueses, também há a permanência de certos elementos que caracterizaram a literatura predominante em África, como o historicismo, por exemplo, muito comum nas obras de autores como Luandino Vieira, Agostinho Neto e Mia Couto.

Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Formado em biologia, desenvolveu durante muito tempo atividades de jornalista e hoje divide seu tempo entre a literatura e estudos de impacto ambiental. Estreou na literatura em 1983 com um volume de poesia, Raiz de Orvalho. Ainda nos anos 80 publicou alguns livros de contos, como Vozes anoitecidas (1986), Cada homem é uma raça (1990), e mais recentemente O fio das missangas (2004). Porém foi no romance que Mia Couto se destacou mundialmente. Seu primeiro romance, Terra Sonâmbula, foi publicado em 1992. Depois vieram A varanda de Frangipani (1996), O último voo do flamingo (2000), O outro pé da sereia (2006), Venenos de Deus,Remédios do Diabo (2008) e Jerusalém (2009). (No Brasil o livro tem o título de Antes de nascer o mundo).

Mia Couto explora muito bem em seus romances a questão do fantástico, que em suas obras aparecem mais como elementos místicos africanos. O romance O outro pé da sereia é um bom exemplo disso. O livro narra duas histórias paralelas, uma em 2002, na Moçambique atual, e a outra no final de 1560 e início de 1561, entre Goa, na Índia, e Moçambique.

Em ambas as narrativas há uma gama imensa de personagens, reais e fictícios, que de uma maneira ou de outra acabam se cruzando, mesmo estando distantes 500 anos. Da narrativa atual, as personagens principais são Zero Madzero e sua esposa, Mwadia Malunga, um casal de pastores que vivem num auto exílio na longínqua região de Antigamente. O exílio é explicado no final do livro. Certa manhã, à beira do rio Mussenguezi, o casal encontra uma imagem de Nossa Senhora, e o achado vai mudar a vida dos dois, e é aqui que a história de Zero e Mwadia encontram ecos na outra narrativa, em 1560.


No início do ano de 1560, uma expedição portuguesa liderada pelo jusuíta D. Gonçalo da Silveira, parte de Goa com a inteção de chegar em Monomotapa, na África, e assim converter o reino à fé cristã. Nessa nau em que o jusuíta viaja, ele leva consigo uma belíssima imagem de Nossa Senhora, que depois fica-lhe faltando um dos pés. A viagem é repleta de percalços como tempestades, ameaças de motins, muitas mortes, pecados e conspirações.

A trama do romance é muito movimentada e isso torna a leitura muito ágil. É interessante perceber que fatos ocorridos no século XVI exercerão influência direta na atualidade. Todo o romance apresenta alguns elementos do sebastianismo, como a ideia da volta de um mártir (ou messias). O mártir nesse caso não seria apenas um, mas sim todo um povoado, toda Vila Longe, a terra natal de Mwadia e de seus familiares. As pessoas aqui não esperam mais nada, não esperam que mais nada aconteça, estão presas na decrepitude do tempo. É com um tom lírico que Mia Couto descreve todo esse processo de aniquilamento matafísico do povoado de Vila Longe, à maneira de García Marquez em Cem anos de solidão .

Vila Longe serve aqui como um microcosmo de toda África, com todos seus encantos e com todas suas misérias. Aos poucos cada personagem vai sumindo, vai se desvanecendo. Mia Couto tece, através da metáfora, através de símbolos, um perfil da África e de seus habitantes como um todo, com todo seu misticismo, inocência, mazelas e belezas.