domingo, 20 de junho de 2010

A MORTE DE SARAMAGO


Nota-se a passagem do tempo quando os mais velhos morrem, e desta forma sabemos que caminhamos para o mesmo fim. É mais desalentador quando um grande mestre, próximo ou não, nos deixa.Caso de José Saramago, morto na última sexta-feira em sua casa em Lanzarote.

Saramago era um sujeito controverso, polêmico, muitas vezes incoerente, mas é inegável o fato de que ele era um grande escritor. Meu primeiro contato com a obra de José Saramago foi durante a graduação, em uma aula do Prof. Jayme (2004), na qual o professor nos passou uma lista de obras, e entre elas estava Memorial do Convento (1982). Imediatamente fui à biblioteca da PUC e emprestei uma edição antiga do romance que narra a história de Blimunda e do padre que "caçava vontades", e queria chegar logo em casa para descobrir aquele autor singular, que escrevia parágrafos imensos, não usava pontos de interrogação, os diálogos se misturavam aos pensamentos dos personagens e assim por diante. Devorei o livro em duas noites frias de Curitiba e esse momento foi um divisor de águas em minha curta e inexperiente vida de leitor.

A partir da leitura de Memorial do Convento passei a buscar as outras obras de Saramago, e a que li a seguir foi História do Cerco de Lisboa (1988), um romance histórico sobre a conquista de Lisboa aos mouros com a ajuda dos cruzados.E há no livro também a história paralela do revisor Raimundo Silva, que altera certa frase nos originais de um livro de história acrescentando a palavra "não".

Esse romance serviu para me interessar ainda mais pela obra de Saramago,e o próximo que li foi, para mim, sua obra prima, Levantado do Chão (1979). Esse livro em particular chamou minha atenção para questões que já estavam me interessando há algum tempo na literatura portuguesa, que eram as lutas dos trabalhadores rurais num Alentejo corrupto,cruel,ditatorial e sem leis, à maneira do neorrealismo. Saramago faz nesse romance uma espécie de neorrealismo tardio, pois a corrente já havia se saturado.

Depois li vários grandes livros de Saramago, como A Jangada de Pedra,O Evangelho segundo Jesus Cristo,Ensaio sobre a cegueira e as suas obras mais recentes, A Caverna,As intermitências da morte,A viagem do elefante e seu último romance publicado, Caim.Saramago continuou a escrever seus textos naquele estilo que o consagrou nos anos 80, sem uma gramática convencional, muito fluxo de consciência, uso abusivo do discurso indireto livre.

Esperar um livro novo de Saramago sempre foi um prazer, mesmo pecando em obras como O Homem Duplicado, de 2002.Saramgo acertou bem a mão em alguns de seus romances mais recentes, publicados a partir de 2000. As Intermitências da morte é um grande livro, assim como A viagem do elefante. Caim foi um livro que tive um grande prazer em ler, mas está longe daquele Saramago de Levantado do Chão, Jangada de pedra e O Evangelho.

Em Caim Saramago teve a intenção de provocar religiosos, de alfinetar a igreja, de declarar ao mundo, mais uma vez, que era ateu.O velho Saramago pecou neste aspecto, pois a lapidação do texto ficou um pouco em segundo plano.Mas repito, foi um livro que gostei muito, mesmo com suas impurezas de estilo. Foi uma maneira interessante de Saramago se despedir da vida, com mais uma "perversidade" contra a igreja.Agora nos resta ler o que ainda não lemos ou reler o que já lemos, pois aquela incrível sensação de que em breve um livro novo de Saramago estaria em nossas mãos, nunca mais.