sábado, 19 de julho de 2008

OSTRACISMO LITERÁRIO I: Da progressão geométrica da estupidez ao naufrágio das ilusões



Diversos autores na história desistiram da literatura. Publicaram um ou mais livros e definitivamente desistiram da ficção. Caso de Raduan Nassar, autor de Lavoura Arcaica (1975), que depois da escrita dessa obra, nunca mais escreveu nada inédito. Publicou o romance Um Copo de Cólera (1977), livro escrito em 1970, e o volume de contos Menina a Caminho (1997), que reúne contos escritos entre 1960 e 1970, portanto, todas as obras que Nassar publicou depois de Lavoura Arcaica, foram escritas antes. É uma biografia no mínimo curiosa.

Outro autor que passou pela mesma síndrome da abstinência literária foi Carlos Heitor Cony, que depois de publicar Pilatos (1973), ficou 21 anos sem publicar ficção. Gabriel Garcia Márquez, Patrick Sussekind, Bruno Seabra (autor brasileiro do século XIX, totalmente esquecido, que publicou um único romance, Paulo), também são autores que de uma maneira ou de outra ficaram anos sem publicar ou simplesmente desistiram de fato da literatura.

No Brasil, talvez o maior exemplo de um autor que tenha desistido da literatura é Diogo Mainardi. Atualmente Mainardi publica semanalmente uma crônica na revista Veja, na qual aborda diversos temas do cotidiano brasileiro, principalmente sua aversão ao governo Lula. Mainardi, antes de escrever sobre política, publicou quatro romances: Malthus (1989), Arquipélago (1992), Polígono das Secas (1995) e Contra o Brasil (1998). Nesse texto escreverei, caro leitor, sobre os dois primeiros romances, e na sequência sobre os dois últimos.

Malthus é um texto experimental, nem tanto em sua forma, mas em seu conteúdo. Malthus apresenta ao leitor, normalmente perplexo, como escreveu Mário Sabino na orelha da segunda edição do romance, a progressão geométrica da estupidez. É um romance que não apresenta enredo linear e lógico, nem personagens reais. Parece que toda a ação é um delírio do protagonista Loyola y Loyola, que através de toda a narrativa dá golpes em diversos lugares diferentes, e assim não pára em nenhum deles.

O título do romance também causa estranhamento, pois não é um livro que fala sobre o economista do século XIX, mas Mainardi faz aqui uma fina e sutil alusão à sua teoria, que através das atitudes insensatas e grotescas dos personagens, como a D. Robalinho, os magistrados, Ovas Negrão, a colocam em prática, porém, é claro, às avessas. E dessa maneira o breve romance se encerra, sem um aparente significado lógico, mas cabe ao leitor, que deve ficar muito atento à narrativa, pois esta está repleta de armadilhas, descobrir o emaranhado de insensatez da condição humana, pois é disso que trata o romance. Em Malthus, ao mesmo tempo em que Mainardi atinge alto nível em sua narrativa, também peca pelo excesso de experimentalismo, fato que torna o texto maçante em determinados momentos.

Fato que não ocorre no seu livro Arquipélago, segundo romance da série, que apresenta um escritor muito mais maduro, dominando mais a técnica narrativa e muito mais erudito. Apesar do aparente tom de galhofa e deboche do romance, Diogo Mainardi constrói uma narrativa saborosa, à maneira de Swift e Voltaire. É um texto que faz alusão a autores que de certa forma, em determinados momentos de suas vidas, se encontraram em situações em que foram obrigados (ou não) a desembarcar em ilhas, como foi o caso de Rousseau, no verídico incidente na ilha de Saint-Pierre em 1765, Platão em Siracusa, São João em Patmos e Thomas More, mas More criou uma ilha imaginária em sua Utopia.

O romance é narrado em primeira pessoa, e o narrador-protagonista é um anônimo que juntamente com outros desabrigados encontra abrigo na cúpula de uma igreja, único ponto que não fora submerso depois do desmoronamento de uma barragem de uma usina hidrelétrica. A partir desse incidente o protagonista passa a ver em cada acontecimento do cotidiano na cúpula uma alusão a elementos da história ou da filosofia. Portanto, o protagonista se entrega a uma espécie de ócio criativo, e passa a analisar cada situação em que ele e os seus companheiros desabrigados se encontram, do ponto de vista filosófico de outros autores. E nessa viagem que ele se submete, e submete os outros, vai notando uma aparente falta de sentido naquilo que estão fazendo (alusão à vida real?) e ao passo em que o tempo vai passando, os desabrigados o elegem o legislador da ilha e imploram que o protagonista lhes imponha atividades sem sentido algum, apenas para terem o que fazer.

A narrativa se desenvolve em uma atmosfera onírica, como em Malthus, mas durante sua composição o autor alcançou um nível muito alto dentro da literatura brasileira, e fez de Arquipélago um exemplo de literatura da mais elevada qualidade. Entre alguns capítulos, Mainardi encaixa dentro do corpo do romance pequenos ensaios sobre os filósofos que o livro faz menção, falando assim das suas desventuras nas ilhas pelas quais passaram, ou criaram. E as atitudes do protagonista o levam, dessa maneira, a ser jogado no mar pelos desabrigados insurgentes, depois é deposto e substituído por outro líder, mas depois de tantos obstáculos, os desabrigados percebem que suas vidas não têm sentido se não o tiverem como líder. É uma alfinetada no mito que foi criado sobre grandes autores da história e o público leitor também, como pessoas vazias e sem pensamento próprio.

No final do romance o protagonista finalmente sai da cúpula numa jangada com outros desabrigados, e dessa maneira tentam alcançar terra firme, mas só o protagonista o consegue, pois os ouros, ao longo da viagem, foram padecendo de formas diversas. O último capítulo aqui é muito significativo, pois resume muitas considerações sobre o romance e sobre o título. Pulando de uma ilha para outra, o protagonista tenta encontrar um lugar que lhe sirva como fonte de análise filosófica e metafísica. Não encontrando nenhum lugar assim (na baía de Guanabara), diz o protagonista:

Ao sair da baía de Guanabara, iria seguir em direção ao norte, analisando uma a uma todas as ilhas que encontrasse. Não tinha nada melhor a fazer.

Dessa forma se encerra o ciclo do protagonista, mas agora está em terra firme, metáfora que pode indicar o amadurecimento de sua filosofia, e que talvez encontre as respostas que procura. As diversas influências dos filósofos (Rousseau, Thomas More, Platão) cada um simbolizado por uma ilha distinta da outra, dá sentido ao título do romance. É mais um arquipélago de idéias do que de ilhas. E é na busca por essas ilhas, ou por esse arquipélago, que o protagonista anônimo elabora a sua filosofia.