quinta-feira, 17 de setembro de 2009

ESCRITORES PORTUGUESES CONTEMPORÂNEOS (III) - AUGUSTO ABELAIRA : A RUPTURA DO SUJEITO


Muitos escritores portugueses durante o periodo repressor de Salazar (1933 - 1974) publicaram obras que abertamente denunciavam o regime ditatorial, principalmente durante o periodo neo-realista. Naturalmente que muitos desses autores "engajados" praticavam a chamada literatura panfletária, mas também muitos destes mesmos autores não se limitavam à crítica política e ideológica. Ferreira de Castro, Alves Redol, Miguel Torga, Fernando Namora, Manuel da Fonseca foram escritores que no início de suas trajetórias literárias se preocuparam com temáticas sociais, mas suas obras, de modo geral, evoluiram a um patamar de grande prestígio e de qualidade formal dentro da literatura portuguesa.

Vários destes autores que se vincularam ao neo-realismo nos anos 40, evoluiram seus universos ficcionais típicos da época, como o foco narrativo em terceira para a primeira pessoa, deixando a narrativa mais objetiva, uma preocupação maior com o coletivo do que com o individual, ações que transcorriam em ambientes rurais, o retrato dos dramas de trabalhadores num Alentejo basicamente feudal, para temas mais centrados em dramas pessoais do indivíduo. A crítica social depois de certo ponto ficou um tanto estereotipada e maçante, e muitos autores migraram do neo-realismo para correntes diversas, e em muitos casos, alguns não se vincularam à tendência alguma e permaneceram "independentes", como Vergílio Ferreira, José Rodrigues Miguéis e Augusto Abelaira. E é sobre este último que falaremos a seguir.

Augusto Abelaira (1926 - 2003) português de Ançã, pequena vila situada entre Coimbra e Cantanhede, região central de Portugal, foi um escritor que no início de sua carreira literária participou do movimento neo-realista. Iniciou na literatura com o livro A Cidade das Flores (1959), depois vieram os romances Os Desertores (1960), As Boas Intenções (1963), Enseada Amena (1966), Bolor (1968), Sem Tetos entre Ruinas (1979), O Triunfo da Morte (1981), O Bosque Harmonioso (1982), O único animal que... (1985), Deste modo ou Daquele (1990), Outrora, agora (1996), Nem só mas também (2004 - póstumo). Também produziu um livro de contos intitulado Quatro Paredes Nuas (1972) e três peças de teatro: A Palavra é de Oiro (1961), O Nariz de Cleopatra (1962) e Ode (quase) Marítima (1968).

Autor praticante de vários gêneros, foi principalmente no romance em que Abelaira se sobressaiu. Sua obra mais marcante foi Bolor, romance que marcou uma espécie de ruptura com sua obra anterior. Bolor marca o início de sua fase madura, deixando completamente no passado suas influências neo-realistas e passando a se preocupar com temáticas metafísicas e com formas narrativas mais experimentais. Não é um experimentalismo comum e já produzido na literatura portuguesa até então, mas sim um painel formal rigidamente construido e pensado para, entre outros objetivos, confundir o leitor.

Bolor tem a forma de um diário, e seus capítulos são marcados com dia e mês. Os protagonistas são os próprios (supostos) autores do diário, Humberto, Maria dos Remédios e Aleixo. Os protagonistas formam uma espécie de triângulo amoroso que é, segundo Vilma Arêas ,"misteriosamente" mal resolvido. Esse "mistério" (entre aspas mesmo) que permeia todo o romance, parece ser deixado pelo autor para não ser resolvido, pois segundo o próprio autor do romance, "os mistérios não existem para serem resolvidos; resolvem-se os mistérios com um novo mistério". E assim como não sabe-se claramente o que acontece entre os três "narradores" também não sabe-se quem narra determidados fragmentos, fazendo com que cada um dos protagonistas sejam, se é que todos eles de fato existem, figuras suspeitas.

Segundo Massaud Moisés, "Abelaira põe o homem em questão em face das opções angustiantes oferecidas pela Política, pela Arte e pelo Amor, terminando sempre por apontar, numa lucidez pessimistamente corrosiva, o caos como único resultado possível". Há de se levar em consideração em Bolor a fragmentação da narrativa. A prosa é caótica, como um resultado do próprio caos que permeia a vida tumultuada de seus protagonistas. No livro, significante e significado são elementos que completam um ao outro. A linguagem é reflexo da temática, as ações dos protagonistas são reflexos da narrativa e assim por diante. Nenhum dos elementos distintos (tema e forma) podem ser sobrepostos aos outros em grau de importância, pois "toda essa estilização estética, esse saber fazer, esse aparente culto do novo não impedem e não diluem a reflexão inteligente e interessada a respeito do mundo e da sociedade". (Arêas)

Portanto, Abelaira ao construir um romance novo, ao utilizar uma forma mais intelectualmente articulada, não relega suas temáticas e preocupações a um segundo plano, mas procura deixar um pólo dependente do outro. O que de fato acontece em relação à temática, é que ela muda, ou seja, assume nesse romance proporções mais individualistas, subjetivas. Ao passo em que Abelaira deixa de se preocupar com o coletivo (e há de se levar em consideração a mudança do foco narrativo da terceira para a primeira pessoa), passa a se preocupar com os problemas metafísicos e ontológicos do ser humano.

Os personagens de Bolor se entregam a uma espécie de silêncio opcional, provocando assim uma evidente incomunicabilidade entre eles (incomunicabilidade entre os seres) e com tudo que há ao seu redor. Os personagens se traem, ou seja, traem a si próprios ao negarem ou abandonarem atividades que antes foram essenciais. Humberto claramente não faz mais questão de "participar" de uma sociedade que considera superficial e hipócrita. Provável alusão à desilusão da conquista de uma sociedade democrática, mesmo que o livro tenha sido escrito antes da Revolução dos Cravos. Talvez a visão de Humberto seja uma antecipação do que estava por vir.

O que ocorre com Maria dos Remédios e Aleixo não é diferente, pois ambos abandonam, assim como Humberto, atividades que foram vitais em suas vidas, mas que agora não significam mais nada. Maria dos Remédios é uma cantora que por desencanto canta apenas quando está só. E Aleixo, que troca as artes plásticas pela publicidade, afirma que os artistas não fariam falta alguma à sociedade, "a arte está reduzida a dar beleza aos bem instalados na vida e que os artistas, todos os artistas deviam emudecer, por-se entre parênteses até que o mundo se transforme". Dessa forma Aleixo define a atual condição dos três protagonistas, se incluindo nos artistas que deviam se calar, e assim, nenhum deles pretende mudar o presente e nem têm pretensões de arquitetar um futuro promissor. Como no mito da caverna de Platão, o que os três veem são sombras, e assim querem continuar. Vivem um vitalício simulacro da vida real.