segunda-feira, 28 de setembro de 2009

ESCRITORES PORTUGUESES CONTEMPORÂNEOS (IV) - URBANO TAVARES RODRIGUES: DIAS LAMACENTOS E O SUICÍDIO MÍSTICO DO HOMEM MODERNO


Seguindo a série Escritores Portugueses Contemporâneos, este é o quarto entre cinco artigos. Nos três primeiros abordei narrativas de José Saramago, Almeida Faria e Augusto Abelaira, mais especificamente a produção romanesca desses autores. Achei conveniente, também por sugestão de alguns leitores, abordar nos dois últimos artigos que restam da série gêneros diferentes, como o conto e a poesia.

O conto português do século XX foi muito bem representado por grandes nomes como Miguel Torga, Manuel da Fonseca, Vergílio Ferreira, Lídia Jorge, Urbano Tavares Rodrigues e outros. Mesmo sendo um gênero que permaneceu à margem durante muito tempo, muitos desses autores foram verdadeiros mestres do gênero. Um bom exemplo de um grande mestre das narrativas curtas é Urbano Tavares Rodrigues.

Nascido em Lisboa em 1923, Tavares Rodrigues formou-se em Filologia Românica pela Universidade de Lisboa, na qual lecionou até aposentar-se. Tem vasta obra publicada em Portugal e em toda Europa. Autor de romances e contos, livros de viagens e crônicas, ensaio e crítica, foi no conto que obteve maior êxito estilístico. Entre suas obras mais significativas estão A Noite Roxa (1956), Bastardos do Sol (1959) e Dias Lamacentos (1965), volume de contos e duas micro-novelas.

Dias Lamacentos é composto por 4 contos e por duas micro-novelas, sendo que a última, Prima Matéria, foi incluida no volume, juntamente com o conto A história de uma mulher, na terceira edição, em 1988. Segundo o próprio autor, concernente ao título do livro, "Dias Lamacentos, título intencional que, como outros meus, foi metáfora do Fascismo, ao mesmo que, em primeira leitura, cobria semanticamente o conto epônimo". A atmosfera dos contos presentes neste livro, assim como o título, também faz menção indireta ao fascismo e ao período ditatorial em Portugal. Em um primeiro momento as narrativas seguem, mesmo que ainda em embrião, o existencialismo francês de Sartre e Malraux. Já em um segundo momento, a militância de Urbano Tavares Rodrigues se faz muito clara, fato que acaba por prejudicar sua ficção em determinados aspectos. Como acontece na micro-novela que encerra o livro, Prima Matéria.

Os primeiros contos que fizeram parte da primeira e segunda edições, são verdadeiras obras-primas. O conto que abre o volume é Terra Vermelha, uma narrativa que não apresenta grandes novidades formais, mas a sua atmosfera obscura e sua fluência verbal fazem do conto uma bela prévia do que virá nos contos a seguir. A segunda narrativa, que é mais uma micro-novela do que um conto, Figuras Jacentes, está entre as melhores do livro. É a história de Dinis e Mercês, amantes que envoltos numa relação tumultuada, se veem às voltas num intrincado painel amoroso que desde seu início parece ser conduzido a um final trágico.

É interessante ressaltar que nessa micro-novela Urbano Tavares Rodrigues explora bem o foco narrativo, alternando seus narradores conforme introduz na narrativa capítulos. Dessa forma pode-se perceber a visão de cada narrador sem a intromissão de uma voz onisciente. Dinis é um homem amargurado por ser deficiente físico e por sua situação ser uma constante ameaça, ao menos para ele próprio, às suas intenções de casar-se com Mercês. Seu drama fica mais claro quando Dinis descobre que Mercês passa a se encontrar com um professor de ginástica. Esse é um grande símbolo da narrativa, pois o professor de ginástica é tudo aquilo que Dinis não podia ser, ou seja, um "homem completo" que poderia dar à Mercês a vida que desejava. Pode ser uma metáfora sobre o maniqueísmo que estava tão presente na Europa durante os tempos de guerra, do fascismo. Ao passo em que um é provido do mais puro amor e de "consciência social" (Dinis), o outro (professor de ginástica) é fútil e quer apenas uma situação cômoda, fazendo uma alusão à classe média e à burguesia, ao fascismo e aos movimentos de resistência.

Dessa forma, percebendo que perderia Mercês, Dinis, num momento alucinado, propõe que ambos morram juntos, envenenados. Aqui está uma belíssima construção narrativa de Tavares Rodrigues, pois em um capítulo ele descreve a proposta alucinada de Dinis e a aceitação de Mercês, ou seja, ela aceita se matar junto com Dinis, mas ele volta atrás e apenas assiste a amante morrer em agonia. Mas no capítulo que segue, Dinis afirma ter sido aquilo uma alucinação. E aí vem o segundo momento, em que Dinis, sabendo que Mercês não o amava, se resigna a viver na solidão, "permitindo"a Mercês viver com o professor de ginástica. E por fim, há uma terceira versão do que pode ter acontecido, que é o abandono de Mercês, ela não aparece, o que deixa Dinis mais deprimido, pois preferia que ela tivesse sido sincera, e dito diretamente que não aceitaria tal proposta. Essa terceira versão já se evidencia no início do último capítulo.

É verdade que não vieste. Como havia de comparecer a tão absurda intimação? , a tão repelente convite (p. 63).

E a micro-novela se encerra numa atmosfera onírica, nonsense, se enquadrando mais ao já referido existencialismo (mesmo que em embrião) sartreano. O conto que vem na sequência, Dias Lamacentos, que dá título ao livro, é a melhor de todas as narrativas do volume. Narra uma breve passagem que mostra o diálogo entre dois amigos, Zeca e Dario, que esperam numa construção um homem que é ligado a algum ministério e que lhes conseguirá um alvará para o futuro negócio que abrirão nesse prédio em obras.

Entre trabalhadores mal humorados e insatisfeitos, betoneiras, tijolos, cimentos e muita sujeira, os dois amigos tecem considerações sobre diversos assuntos. Vida, morte, filosofia de Kierkegaard e dessa maneira Tavares Rodrigues vai mostrando as diferenças entre as classes, sem cair no engajamento marxista, na literatura panfletária, e explora uma espécie de existencialismo, fugindo do foco narrativo em terceira pessoa em que, com um narrador onisciente, narra a conversa entre os dois empresários, passa a narrar em primeira pessoa as angústias e aflições de um trabalhador anônimo. As interrupções do trabalhador anônimo interfere no diálogo linear de Zeca e Dario algumas vezes. Todo esse ambiente da construção é invadido por uma escuridão que dá um clima lúgubre à narrativa.

O conto termina quando o foco narrativo volta à terceira pessoa e Zeca, que via apenas as sombras do trabalhador anônimo na parede, como se ele de fato não existisse, como as sombras do mito da caverna de Platão, vê o anônimo cair do prédio. Um fato interessante a se considerar é o mistério que envolve os verdadeiros motivos da queda do trabalhador. Ele caiu como uma vítima de acidente de trabalho ou se jogou. Sutilmente o autor deixa transparecer o suicídio, mas não revela-se de fato o verdadeiro motivo da tragédia. É mais uma vez que Tavares Rodrigues encerra uma narrativa tragicamente neste livro, construindo assim a melhor narrativa do volume.

Urbano Tavares Rodrigues está entre os grandes escritores portugueses contemporâneos, e com certeza um dos maiores contistas portugueses do século XX. Mesmo Tavares Rodrigues tendo trilhado o engajamento marxista em muitas obras suas, não se tornou um autor panfletário. Dias Lamacentos é um exemplo disso, um exemplo da competência literária de um autor que sabe discernir entre política e obra de arte, sem deixar a ideologia se sobressair à literatura.