sexta-feira, 13 de novembro de 2009

MIGUEL SOUZA TAVARES: O TEMPO E O DESERTO


A viagem foi tema recorrente para muitos escritores portugueses, a começar pelos cronistas, durante o Humanismo. Fernão Lopes, Gomes Eanes de Azurana, Rui de Pina, D. Duarte. No Classicismo o maior exemplo é Luís de Camões, com o monumental Os Lusíadas. Nos séculos que se seguiram muitos outros autores produziram textos com essa temática, também muitos poetas, como Almeida Garret, com Viagens à minha Terra, e Padre Manuel Bernardes.

No século XX Miguel Torga (Vindima), Fernando Namora (Retalhos da vida de um médico), José Saramago (Memorial do Convento), Antonio Lobo Antunes (Os cus de Judas) são alguns dos nomes de escritores portugueses que publicaram obras que de alguma maneira retrataram viagens, seja no sentido mítico ou literal da palavra. A viagem pode ser retratada de muitas formas e com fins diversos, como temática social, êxodo, busca ontológica, enfim, o painel é vasto.

Na literatura portuguesa atual há um nome novo produzindo boa literatura e, em seu mais recente trabalho, utilizou o tema da viagem para desenvolver sua narrativa, trata-se de Miguel Souza Tavares, que recém publicou o romance No teu Deserto (2009). Souza Tavares nasceu no Porto em 1952. Formou-se em Direito, mas logo abandonou a advocacia para dedicar-se ao jornalismo e mais recentemente à literatura. Publicou os livros de reportagens e crônicas Sahara - A República da areia (1985) e Sul (1998). Estreou na ficção com Equador (2003). Depois vieram Rio das Flores (2007) e No teu Deserto.

No Teu Deserto é a narrativa em primeira pessoa de um jornalista que, há vinte anos, realizou uma viagem ao Sahara a trabalho com uma equipe de aventureiros e de Cláudia, uma jovem quinze anos mais nova e incrivelmente bela. Sua narrativa, um tanto amarga e lírica, relata a convivência dos dois durante quarenta dias entre o deserto, cidades desconhecidas e as horas passadas no jipe. Muito do que é narrado parece ser muito mais sugerido do que ocorrido de fato, como por exemplo, as noites que os dois passaram, em meio a tormentas, juntos dentro da barraca. Em momento algum relações sexuais são descritas, mas fica claro que as tiveram.

E eu fui e encostei-me a ti, à porta da tenda. O mundo inteiro estava em revolta. O ar não era escuro, era cinzento-pesado, o ruído do vento era apocalíptico, parecia uma besta cega à nossa procura para nos trucidar. Tudo o que horas antes era paz agora era caos, desordem, violência absurda. Puxaste-me a cabeça para o teu ombro e eu encostei-me a ti. Passaste-me o braço pelas costas e não sei quanto tempo fiquei assim até adormecer de exaustão (p. 93).

Essa é uma das várias passagens em que os acontecimentos narrados são mais sugeridos do que ocorridos de fato, assim como as passagens que são narradas por Cláudia. Essas passagens não ficam claras e merecem algumas considerações. Primeiro, logo no início de sua narrativa, o jornalista (que não é nomeado) assume estar contando uma história, estar escrevendo um livro, e que no final, Cláudia morre.

(No fim tu morres. No fim do livro tu morres. Assim mesmo, como se morre nos romances: sem aviso, sem razão, a benefício apenas da história que se quis contar. Assim, tu morres e eu conto. E ficamos de contas saldadas.) (p. 9)

Segundo, assim como o narrador pratica a autodiegese e assume estar escrevendo um livro, as poucas passagens que são narradas por Cláudia podem ter sido criação do narrador, que está vinte anos distante dos acontecimentos descritos, melancólico e austero. Exatamente pelo fato de ter vivenciado os fatos que descreve, o narrador não podendo lembrar de tudo como gostaria, assume claramente a posição de ficcionista e tende a inventar. Mesmo que afirme o contrário.

A verdade é que, agora que me sento para te escrever, reparo - mas sem nenhum espanto nem estranheza - que não preciso de inventar nada: lembro-me de tudo, exactamente tudo, hora por hora, quase cada olhar nosso, cada gesto, cada sorriso, cada amuo. Sim, às vezes acontece-me esta coisa curiosa, quando olho para trás através dos anos: lembrar-me de todos os detalhes - até daqueles que na altura achei que não teriam nenhuma importância nem significado - e todavia ser incapaz de situar o tempo exacto em que vivi as coisas. Como se as continuasse para sempre a viver, ou como se nunca as tivesse vivido (p. 9 e p. 10).

Nota-se que o narrador ao mesmo tempo em que assume o discurso do lembrar, também assume a posição de criador, pois no final do fragmento acima ele mesmo tem dúvida do que pode ter sido inventado ou não. Isso vem de encontro àquela ideia dos fragmentos "narrados" por Cláudia, pois já que ela havia morrido, ela não poderia ter narrado tais acontecimentos. E mesmo que pudesse, o livro que está sendo escrito (o livro dentro do livro, do protagonista, não o de Miguel Souza Tavares), desta maneira sofreria uma interrupção que não faria sentido algum no corpo da escrita. Neste caso deve ser levada em consideração a epígrafe, que diz:

Para a Cláudia
lá em cima,
numa estrela sobre o Sahara

É óbvio que esta epígrafe é do livro do narrador anônimo e não de Souza Tavares. Há nesta obra a presença clara dos conceitos de Umberto Eco sobre autor-empírico e autor-modelo. Miguel Souza Tavares consegue com essa movimentação do foco narrativo e com a tênue linha entre ocorrências e sugestões, uma narrativa lírica e metafórica, com símbolos muito bem construidos. Como é o caso do título.

O deserto que é descrito no romance claramente faz alusão à solidão, mas não se trata apenas de um conceito simplista e clichê. A relação do protagonista com Cláudia dura os quarenta dias que estiveram no deserto, depois se veem uma ou duas vezes num quarto de hospital (Cláudia estava doente, não sabe-se exatamente de qual doença) e desta forma cada um segue um caminho diferente. A solidão à qual o deserto faz alusão é a solidão da vida moderna, do indivíduo moderno, pois o narrador seguiu seus trabalhos mundo afora depois que retornaram a Lisboa e Cláudia seguiu sua vida um tanto vazia, mas ambos ainda sentiam falta daquela breve passagem pelo deserto. E também de sua presença insondável.

A imersão em uma vida atribulada tipicamente moderna foi tão intensa no narrador que ele nem soube quando Claudia morreu, soube por um amigo muito tempo depois. E esta perda é sentida profundamente, mesmo que ambos tenham seguido caminhos opostos, e o interessante é que Souza Tavares não elabora motivos para explicar porque eles não continuaram juntos. Os fatos descritos simplesmente aconteceram, sem explicação, sem salvação e sem volta. O narrador perdeu-se, para sempre, no deserto que é a presença de Cláudia e também a sua ausência, a sua nulidade, pois o deserto, ao mesmo tempo que simboliza os dias que passaram juntos, também simboliza o vazio, a dor, a solidão e o tempo que passou.