quarta-feira, 31 de outubro de 2007

UM POEMA AO CORPO


Em Nome da Terra é um romance já da fase final de Vergílio Ferreira, publicado em 1990. Depois vieram Na Tua Face e Cartas a Sandra, este seu último livro publicado, já póstumo. Seus romances publicados no final da década de 80 até a metade da de 90, apresentam temas e enredos bastante semelhantes, circulares, porém é na linguagem que Vergílio Ferreira se diferencia em suas próprias obras. Como em entrevista dada a Pedro Rolo Duarte, um ex-aluno seu, Vergílio Ferreira falou sobre o fato das pessoas dizerem que ele fala sempre sobre os mesmo temas: “bom, isso é o drama de todo o escritor, ser diferente na igualdade. Costumo dizer que o que há de mais diferente na igualdade é o mar - somos capazes de estar a olhar para ele numa hora seguida, é sempre igual mas é sempre diferente: o tamanho de uma onda, o rebentar de outra, a espuma. Ora, se é possível no mar essas diferenças, também é possível no escritor”.

Em um romance como Em Nome da Terra, no qual há um narrador em primeira pessoa, João, a questão da memória é muito relevante. A narrativa auto - diegética contribui muito para o diálogo interior, para o tempo psicológico e também para a quebra com a noção de tempo estanque, ou seja, de uma estrutura temporal que apresente início, meio e fim, nessa ordem.

Há de se levar em consideração nessa obra, além da intertextualidade com obras e textos da antiguidade, uma dicotomia. Ao mesmo tempo em que surge João com seu corpo mutilado, decadente, há a presença de Mônica, com seu corpo maravilhoso e jovem. Claro, a imagem idealizada de Mônica, a imagem de sua beleza é toda rememorada, ou seja, ocorre através da evocação do passado, do tempo em que os dois eram jovens e se amavam. Pois no presente João está recolhido a uma casa de repouso e Mônica morta. E antes de sua morte ficou muito doente, senil, sob os cuidados de João.

Em relação à intertextualidade com textos da antiguidade, o que é mais pertinente aqui são as referências à Bíblia e a construção dos quatro motivos materiais que são designados por símbolos, o Cristo, o fresco de Pompéia, o desenho de Dürer e o concerto para oboé de Mozart. Trataremos a seguir de cada um destes símbolos.

A figura de Cristo aqui faz referência ao próprio sofrimento de João, pois há pouco tempo uma perna sua fora amputada, e a imagem de Cristo tinha uma perna quebrada. João se identifica com a imagem a ponto de ver-se no lugar do crucificado, abandonado e mutilado.

É só aí que me interessas. Na lástima desse teu corpo. Na amargura da solidão. Como te devias te sentir só. É só aí que me interessas. Na lástima desse teu corpo. Na amargura da solidão.

Algo interessante nessa passagem é a quebra de seu monólogo dirigido à Mônica, e se dirige ao próprio Cristo, algo que ainda não havia acontecido em sua narrativa. João só havia se dirigido à Mônica, a ninguém mais, todos os seus diálogos com Márcia, sua filha que o leva à casa de repouso, é lembrado por João, ou seja, através da evocação deles que aos poucos vão aparecendo no papel.

É quando João vai de fato para a casa de repouso que sua identificação com Cristo torna-se mais direta, pois assim como ele, Cristo não tinha uma perna, fato esse que fez com que João se sentisse muito mais solitário e já no final da vida. O Cristo mutilado para João é desprovido “de qualquer santidade”, assim como ele, é apenas um homem. Um símbolo do fim, da noção de finitude e da fragilidade da vida humana. Junta-se a isso o agravante da perda de Mônica e do abandono dos filhos. João torna-se um sofredor solitário que não tem mais autonomia alguma, da mesma maneira que Mônica durante sua doença que a levou à morte.

A imagem de Cristo no romance está diretamente ligada à imagem do corpo, principalmente de João já decadente e de Mônica senil e debilitada. São imagens belíssimas que causam um incômodo durante a leitura, muito por conseqüência da linguagem poética que permeia toda a narrativa.

A imagem do fresco de Pompéia no romance é a representação de Mônica, mas de Mônica ainda jovem, em seu esplendor. Há nesse fresco a imagem da deusa Flora, e assim como João via-se no lugar de Cristo crucificado e mutilado, via Mônica no lugar da deusa no fresco.

Agora quero olhar-te no fresco de Pompéia. Vê a face. Olho-a infinitamente para tu lá estares e ouço-te rir porque não estarias nunca.

Percebe-se aqui o desejo de João de eternizar a imagem de Mônica colocando-a como elemento do fresco, em uma imagem idealizada muito significativa no romance. O que difere de sua imagem como Cristo, pois ele sofre, está imerso em um abandono irredutível, porém Mônica encarna a imagem da beleza eterna, como era desejo de João.

- Jura que nunca hás de envelhecer - disse-te.
- Juro.
- E que nunca hás de morrer.
- Sim.
- E que a beleza estará sempre contigo. E a glória e a paz.
- Juro.

Nota-se com essa passagem do primeiro capítulo, o desejo de eternidade de João, ou seja, para Vergílio Ferreira, “a morte não é o limite, porque a vida não acaba na morte, acaba sempre mais cedo”. Para João, “só vale a pena na vida o que for contra a morte”. Daí o desejo pela eternidade de Mônica, pelo infinito, pois uma das máximas do existencialismo é que a morte é um absurdo e que não faz parte da vida.

Em contraposição à imagem da deusa Flora no fresco de Pompéia, há a imagem da morte em um quadro de Dürer. Nesse desenho de Dürer há a presença da morte, do espectro da morte, sempre a espreitar. O interessante aqui é a disposição desses objetos, o cristo mutilado, o fresco de Pompéia e o desenho de Dürer, no quarto de João na casa de repouso. Cristo está no centro, o fresco está a um dos lados e o desenho de Dürer do outro. E é através dessa disposição espacial que João vai atribuir os diferentes significados a cada objeto. O cristo mutilado está perante a beleza divina, que é representada pela deusa Flora em clara alusão à Mônica. E perante o espectro da morte sempre a espreitar, diz João à Mônica:

É um desenho macabro que me fez quase sorrir. É de Dürer, minha querida, a Morte coroada e a cavalo. (...) É um esqueleto curvado com a sua gadanha ceifeira sobre um cavalo esquelético com um chocalho.

A Morte aqui grafada com letra maiúscula aparece sempre diante de João mas ele não a leva a sério. Ele diz que aquele “desenho macabro quase o fez sorrir”. Podemos entender essa passagem como o momento de resignação do narrador, ou seja, o fim já é inevitável, não lhe resta mais nada, portanto nada mais a fazer diante da morte. Mais adiante João se refere novamente à imagem dela no quadro de Dürer:

É a figuração mais ridícula da morte, foi talvez por isso que eu o pus aqui dentro.


O último símbolo dos quatro referidos acima é o concerto para oboé de Mozart.
José Leon Machado, professor português e autor de artigo sobre o romance, escreveu:

Em Nome da Terra tem como fundo essa música, como num filme, que o atravessa e lhe dá ritmo, a ambiência criada pelo timbre áspero e roufenho do oboé.

Quando João ouve essa música, ele proclama o nome de Mônica, como se mais uma vez ele a visse presente em símbolos, nesse caso na música. João diz ouvir o nome da esposa no concerto, em uma passagem belíssima do romance:

Vou talvez ouvir de novo o teu nome no concerto de Mozart para oboé. (...) Vou ouvir em paz o amor do teu nome.

Mônica aqui é o próprio oboé, e a melodia remete a memória de um esplendor já desaparecido há tempos do corpo jovem de Mônica. Essa imagem do oboé é a imagem da esposa jovem nas barras de ferro do ginásio, quando era ginasta na juventude. Imagem idealizada essa, pois foi nas barras de ferro e como ginasta que João a conheceu.

E o oboé sozinho longamente, como ele brinca, dança, vejo-te. No espaço da Sé, no ginásio.

Os símbolos no romance são muito ricos, muito significativos e é através da linguagem que adquirem significados tão profundos. As diversas referências à bíblia, à antiguidade clássica e a implicação formal da escrita constroem uma narrativa densa, consistente e também tensa. As referências à bíblia já aparecem na epígrafe. Hoc est corpus meun (com este meu corpo), Mateus, XXVI, 26. E esta referência ao corpo é que serve de mote para a obra, que através da memória de João adquire esse tom ensaístico tão presente em outras obras de Vergílio Ferreira.

Consequentemente, as referências ao corpo, ao seu fim, podem trazer significado para o título, EM NOME DA TERRA. A Terra aqui é vista com certa reverência, pois é ela que dá sustento ao homem, porém também é nela onde o homem é enterrado. A terra aqui recebe um significado metafísico já implícito no indivíduo. Portanto, a Terra, grafada em maiúsculo, faz as vezes de Deus, pois a figura que mais se aproxima de Deus retratada no romance é Cristo, mas esse Cristo, como diz João, “é desprovido de qualquer divindade”. O homem aqui se eternizará na sua própria imagem, ou seja, não há para João a presença de paraíso, mas sim da própria Terra. E é assim que Vergílio Ferreira encerra o romance, como no início:

- Eu te baptizo em nome da Terra, dos astros e da perfeição.
E tu dirás está bem.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Herdeiro do Talmude


Nessa semana que passou, peguei na biblioteca central da pucpr um livro do Isaac Bashevis Singer, Breve Sexta-Feira. Esse livro reune contos escritos em diferentes épocas da atividade intelectual de Singer, mas todos conduzem o leitor àquela atmosfera surrealista judaica da Polônia do início do século XX.

Singer é o que se convencionou chamar de herdeiro literário do Velho Testamento, pois seus contos apresentam um grau de concisão próximo aos textos da Torá, e mais, em muitas vezes com uma estrutura semelhante à fábula ou à parábola bíblica. Mas há de se levar em consideração também a relação de Singer com o judaísmo, que em alguns momentos de sua carreira literária seguiu um caminho mais culturtal do que religioso. Nessa questão o título do livro é muito significativo, Breve Sexta-Feira, que faz alusão ao Shabat.

No primeiro conto, "Taibele e seu Demônio", Singer conta a história de uma viúva que é fascinada pelas lendas e mitos hebraicos, e que acaba por se render aos desejos mundanos proporcionados por um mendigo que se passa pelo demônio Hurmizah, que aparecia em um livro que Taibele estava lendo. Como o mendigo só aparecia à noite, Taibele não podia ver seu rosto e também tinha medo de suas ameaças de ir para o inferno se contrariasse as vontades de Hurmizah. Esse é um conflito tipicamente judaico, que envolve um embate existencial muito relacionado à identidade e à cultura religiosa.

Há outros contos que merecem destaque, como "O Jejum", "Debaixo da faca" e "Sangue". Este último conta a dramática história de Reb Falik e Risha, que se casam, mas Falik é trinta anos mais velho que a esposa, fato esse que a leva buscar prazer carnal com outros homens. Risha acaba por relacionar-se com Reuben, um açougueiro que abatia animais de toda a aldeia.

Nesse conto a imagem da carne aparece como pecado, como desejo, pois depois de relacionar-se com Reuben, Risha fica obcecada por abater animais, por sangue; e como Reb Falik, seu marido, já estava inválido há muito tempo, passou a viver sua relação com Reuben abertamenmte. Essa relação era até certo ponto fetichista, masoquista, e durante suas relações, os dois amantes banhavam-se em sangue dos animais que abatiam. É uma metáfora sobre a dicotomia que existe na relação entre corpo e espírito, ou seja, ceticismo e religião. Embate esse, novamente, tipicamente judaico.

Como não poderia ser diferente, os personagens desse conto, e outros de Singer, são tomados por um sofrimento que não apresenta sua gênese claramente, e quando um membro da comunidade age de forma que destoa dos valores e conceitos estabelecidos principalmente pela religião, só há um caminho: a excomunhão, que é um preceito do Talmude. É o que acontece com Risha.

Nos contos de Isaac Singer vemos muitas situações semelhantes, mas de forma alguma o autor se repete. Seus enredos podem ser circulares, mas diferem na forma de contar, na linguagem. Singer estava tão ligado ao judaísmo (culturalmente)que, mesmo morando em Nova Iorque há muitos anos, ainda escrevia seus textos de ficção em íidiche. Fato que contribuiu muito para sua visão literária e para a formação de sua escrita sintética próxima às parábolas do Antigo Testamento. Um verdadeiro herdeiro de uma cultura milenar que tem como máxima a palavra escrita. Afinal, o legado principal dos hebreus à humanidade foi um livro. Nada mais significativo.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Sob a égide do tempo



Raduan Nassar, autor singular, conseguiu atingir com Lavoura Arcaica o ponto máximo de sua produção e um dos momentos mais importantes na história da literatura brasileira. No romance nos deparamos com um enredo intrincado, denso e tenso, o que é fruto da própria linguagem utilizada por Nassar, muito próxima do que se convencionou chamar de “prosa poética”.

Raduan faz da confusão mental em que seu protagonista – narrador se encontra a construção de uma narração repleta de implicações formais prolixas e inteligentes, próprio dos grandes autores. Portanto, ao mesmo tempo em que nos deparamos com um enredo repleto por significados poéticos e metáforas, nos deparamos também com a construção de uma linguagem poética muito incomum, que não chega ao experimentalismo, mas sim a um estranhamento formal.

André, o protagonista – narrador, durante toda sua narrativa, não assume em sua fala um tom de diálogo, mas sim um tom de confissão em um emaranhado de palavras torpes e delírios. Muito de sua confusão deve-se ao fato da embriaguez em que ele se encontra, quando nos primeiros capítulos do romance André bebe vinho com seu irmão Pedro:

“É o meu delírio, Pedro, é o meu delírio, se você quer saber" (...) mas isso só foi um passar pela cabeça um tanto tumultuado que me fez virar o copo em dois goles rápidos, e eu que achava inútil dizer fosse o que fosse passei a ouvir. (p. 18)

Um fato importante em Lavoura Arcaica que temos de levar em consideração é o foco narrativo assumido por André, que está relacionado com o encadeamento dos tempos no romance, e que se apresentam sobrepostos. Em primeiro lugar há o tempo da narração, ou seja, André está longe do que narra, tempos depois, já amadurecido. Em segundo lugar há o tempo do reencontro com Pedro, seu irmão que vai buscá-lo no quarto de pensão, e que se evoca, na confissão do relato do narrador, o tempo anterior à partida e seus motivos. Porém, há de se levar em consideração aqui a existência de um terceiro tempo na narrativa, pois, as confissões de André ao seu irmão Pedro sobre os fatos ocorridos na fazenda antes de sua partida, são lembranças do André que está no quarto de pensão com seu irmão mais velho, ou do André distante no tempo e no espaço, o narrador? Essa ocorrência da sobreposição dos tempos é de extrema importância para a compreensão da narrativa.


Durante o relato de André, notamos que os espaços nos quais ele viveu, seja na fazenda, na pensão, na cidade, exerceram influência direta sobre ele. Primeiramente são os espaços da fazenda que André rememora, os quais representam para ele as origens, as raízes. A fazenda representa valores complexos e variados e seu abandono é um dos centros do enredo. Mas ao mesmo tempo em que a fazenda representa suas origens, representa também o impacto dos valores do pai, o espaço da ordem, da censura, do trabalho.

Os espaços internos da fazenda, como o quarto, a cozinha, a igreja, estão relacionados ao que representam a mãe e Ana, um misto de erotismo e espiritualidade. São espaços de repressão onde André encontra o lado oculto da família, o lado escuro, que se guarda como pecado e perversão. Outro espaço interno importante é o da sala de jantar, com sua mesa comparada a uma árvore de onde surgissem ramos sãos, à direita do patriarca, e ramos doentios, à esquerda:

O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto... (p. 156 -57)

No enredo percebemos uma clara alusão à parábola do filho pródigo e a algumas sentenças do Alcorão (“Vos são interditadas: vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs”). Porém, o comportamento de André é uma perversão da parábola bíblica levada a um extremo. Nas confusas palavras de André há a tentativa de perversão do discurso do pai e de seu significado e a isso se acrescenta a relação edipiana com a mãe.

Indo contra a prédica do pai e do Alcorão, André mantém uma relação incestuosa com Ana, símbolo do mistério e de uma descoberta trágica. Há um impasse em relação à Ana que se estabelece em virtude do impossível de qualquer defesa desse amor (“que culpa temos nós desse fruto da infância?”) o que coloca o tema da solidão do indivíduo em face do seu destino, sempre maior ou mais forte do que o desejo pessoal.

Lavoura Arcaica é um romance denso, pungente e talvez possamos classificá-lo como um romance ensaio. Algo interessante a observar nesse livro, é que ele narra um drama universal e atemporal, ou seja, o drama de André constitui-se perdido no tempo e no espaço. O tempo nessa obra, a concepção de tempo (ou de tempos), é um fator de extrema importância e significado, o que torna a narrativa, conforme seu desenvolvimento, mais introspectiva e poética através da construção de uma linguagem incrivelmente bem elaborada e de um universo trágico de estranha beleza.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

O flautista


Caminhava sempre sozinho, as janelas estavam sempre fechadas. Cada volta que a chave dava na porta era um aperto em seu coração. O seu caminhar na rua escura era torpe, inseguro. Não sabia em que se apoiar e frequentemente tinha a sensação de que estava caindo.

Sentia-se seguro quando seus deuses estavam por perto, quando através das brumas intermináveis eles surgiam e o levavam para lugares distantes. Sua própria vida era como uma masmorra no alto de uma colina que desaparecia no horizonte, e seus desejos estavam aprisionados em calabouços obscuros e gelados.

Não tentava abrir mais seus olhos, pois a escuridão o vencia com facilidade. O transportava de forma rápida e ágil através de sentidos e olhares assustados. Suas mãos pareciam sempre atadas, suas pernas há tempos que não o obedeciam, seus olhos sempre a enxergar dor e prazer como sensações parelhas.

Passava por um imenso corredor feito de pedras escuras, o chão estava úmido devido às chuvas de junho. Vários retratos antigos o olhavam com lágrimas nos olhos e sussurravam entre si. Conforme ele ia passando pelas velhas molduras seu rosto ficava cada vez mais perdido através da intensa neblina que dominava todo corredor. A cada passo que dava os archotes que iluminavam o corredor do calabouço se apagavam. Não se assustava, nem se importava, apenas caminhava em direção de seus deuses. Eram deuses terríveis, intolerantes, nada misericordiosos. Com desejo e com devoção chegava ao altar onde faria a oferenda. Entoava cantos e dedicava olhares aflitos que clamavam por bênção.

Esse santo desejo era seu ópio, era sua vida. Às vezes sentia-se o único ser lúcido sobre a face da terra, mesmo sendo o único a andar na contramão. O mundo lhe parecia... O que lhe parecia o mundo? Era apenas uma vitrine repleta de ilusão diante de olhares sedentos por agonia. Não era ele que pensava dessa forma, ele nem sabia em que pensava. Mas tinha essa imagem apocalíptica em algum lugar de seu inconsciente. Ainda não havia descoberto esses conceitos e valores, mas os sentia, de alguma forma os sentia.

Em igrejas, em tabernas, em prostíbulos, em casas, enfim, por todos os lugares já andara, porém em nenhum deles sentiu-se livre, em nenhum destes lugares sentiu-se como um ser capaz de raciocinar sozinho, porque nunca teve em sua mente essas idéias de autonomia.


Talvez todas suas andanças pudessem resultar em uma segunda versão da obra do velho Burton. Anatomia da Melancolia? Ele nunca havia lido o Burton, mas era como se já tivesse. Sem compreender nada do que se passava em sua mente, com as mãos abertas bateu levemente em seu rosto magro para recuperar um pouco de insanidade. Levantou do banco da praça e começou sua caminhada rumo à loucura tão esperada.

Como o secular flautista guiou milhares de crianças rumo ao mar, ele guiou milhares de vultos rumo aos imensos portões da insanidade. Gritou até ser ouvido. Os portões se abriram, entregou-se à sua lucidez, fechou sua porta e jogou a chave fora. Havia encontrado seu paraíso. Vendo o reflexo de seus olhos aflitos na água em que bebia, deitou no chão e começou a entoar uma antiga canção. Vários vultos que o cercavam começaram a caminhar em direção do mar.








quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Cristovão Tezza e seu Filho Eterno: romance do ano?


No último dia 21, no restaurante Beto Batata, em Curitiba, Cristovão Tezza lançou seu novo romance, intitulado O Filho Eterno (Record, 222 p.). Uma pessoa fantástica esse Tezza. Muitos críticos estão jurando que este será o livro do ano. Forte candidato a ganhar o Jabuti 2007.


Miguel Sanches Neto confirma essa prédica dizendo que "com O Filho Eterno, Cristovão Tezza renuncia às preferências veladas e trata de forma direta da própria vida, inscrevendo abertamente a sua história num romance fadado ao sucesso".


O fato é que Tezza é um grande escritor, como já ficou provado em romances como Uma Noite em Curitiba, A Suavidade do Vento, Breve Espaço entre cor e sombra etc. É um autor que foi superando seu próprio estilo ao longo dos anos, de livro para livro. E Cristovão sendo um acadêmico, o interessante é que ele não se tornou um escritor acadêmico, pseudo intelectual. Como já afirmou o próprio escritor, "não tem nada pior que uma tese escrita com características de ficção ou um romance escrito com carcterísticas de tese".


De fato. Esperemos agora mais um romance denso que, semelhante a outros do autor, tende mais para o ensaio ficcional.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Raul Brandão - Entre a psicose e o Decadentismo


Raul Brandão foi um autor que trilhou caminhos diversos dentro da literatura portuguesa. Começou como contista com o volume Impressões e Paisagens, ainda ligado ao Naturalismo. nessa fase inicial Raul Brandão tinha certo interesse nas temáticas sociais, na vida das pessoas do povo.


As vertentes artísticas e literárias em ascensão no final do século XIX, principalmente o Decadentismo europeu, influenciaram diretamente Raul Brandão, e isso aparece com mais clareza em suas narrativas longas. O melhor de sua obra constitui-se na trilogia A Farsa (1903), Os Pobres (1906) e Húmus (1917), este último é considerado seu melhor romance.


Húmus é um romance que não segue um enredo lógico, linear, apesar da forma de diário. Esse é um paradoxo do texto, porque ao mesmo tempo em que o autor divide seu romance em capítulos e os capítulos em sub-capítulos com data, a narrativa é confusa, desconexa, neurótica, delirante e onírica.


O romance é composto por personagens fantasmagóricos que o leitor não sabe se de fato existem ou não. Os personagens são mais espectros do que pessoas reais. O que deve-se levar mais em consideração em um romance como Húmus é a linguagem. A composição da linguagem nesse texto é riquíssima, fato que faz de Húmus um texto entre o romance e o poema em prosa, ou um romance de prosa poética.


O que fica evidente nesse livro de Raul Brandão é a predominante presença de um sentimento trágico e de que a vida nada significa. Fato que contribui para a confusão mental e linguística do narrador. Nota-se uma atmosfera trágica onde o mundo é composto apenas por gemidos horrendos, por dor e por incapacidade de mudar o presente.


Um ponto relevante na composição de Húmus é a evidente fuga da realidade através do sonho. Em determinada altura da narrativa, o narrador propõe ao seu interlocutor seguir sonhando, e assim encontrar sua redenção, ou voltar à vida real "e seguir o estúpido rebanho" ( p.66).


Essa temática da fuga é rica e constante na obra de Raul Brandão, o que muitas vezes contribui para a narrativa complexa e estertorosa, repleta por seres decadentes oníricos. Mas aí está a força de sua escrita, a importância de sua linguagem psicótica e doentia, que chega ao seu momento de epifania através do nulo, da extinção.





sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Ecos


A luz ainda estava acesa. Ele podia ver por baixo da porta. A luz ainda estava acesa. Naquela casa que dormia seu coração agitado pulsava, era uma espécie de força propulsora que lhe dominava, mas por alguma razão o fazia parar diante da porta fechada. Havia uma batalha terrível com sua própria mão, que ia em direção da porta, mas sempre recuava.

Aquela luz era algum vestígio de esperança? Todas as noites esta pergunta fazia seus olhos arderem e seu corpo se revirar na cama em busca de paz. Os sonhos e os ideais eram agora retratos disformes em preto e branco pendurados em uma parede do porão escuro. Aquele doce som de carícias noturnas eram apenas ecos distantes e soturnos que o angustiavam.

Os passos que vinham do quarto também o inquietavam, talvez fossem piores do que a luz acesa. E se a luz definitivamente se apagasse? E se a luz se apagasse para sempre? Sua caminhada pelo corredor era tensa, seus passos pesados. E se a luz se apagasse? Era tomado por um sentimento de vazio, de extinção, de nada, de nulo. Ela também caminhava dentro do quarto, não dormia. Ambos sabiam da situação e tinham noção de sua gravidade. Bater na porta? Abrir a porta? Cessar a caminhada e apagar a luz? Não havia coragem. A agonia era imensa, era intensa.

Entre um cigarro e outro, imerso na escuridão, pensava em algum modo de chegar a ela, em algum modo de dominar seus sentidos e parar aquela busca sinistra por algo que não sabia o que era. Os ruídos eram difíceis de ouvir, porém quando ouvidos soavam como trovões em tempestades agonizantes. Na caminhada desenfreada através do corredor sombrio suas mãos tremiam.

Ainda podia ouvir os passos que vinham do quarto, sempre com a luz acesa. Ao mesmo tempo em que pareciam vestígios de esperança pareciam também um caminho sem volta. Não havia repouso para suas inquietações.

Caminhou até o fim do corredor e dirigiu-se ao bar. Pegou uma garrafa de gim e preparou uma dose que serviria como um escudo de proteção. No andar de cima as crianças dormiam, o menino e a menina. Não sabiam o que acontecia no andar de baixo. Não sabiam da angústia que se apoderara de todo seu pensamento e nem de suas caminhadas solitárias, noite após noite, pelo corredor mergulhado em trevas.

De repente os passos de dentro do quarto cessaram. Ele tomou todo o gim e com muito cuidado se aproximou da porta. Encostou seu ouvido direito nesta porta que lhe parecia uma muralha surreal e, com um pavor que lhe dominara por inteiro, vagarosamente, com os olhos fechados foi baixando a cabeça para olhar a luz que vinha pela fresta da porta. Havia chegado o momento, pensou.

Abriu os olhos. A luz havia se apagado.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Oficina de Poesia II - O Eu - lírico e a figura do poeta: construção e desconstrução em Fernando Pessoa e David Mourão-Ferreira


David Mourão-Ferreira

Escritor e professor universitário português, natural de Lisboa. Licenciou-se em Filologia Românica em 1951. Foi professor do ensino técnico e do ensino liceal e, em 1957, iniciou a sua carreira de professor universitário na Faculdade de Letras de Lisboa.

A sua carreira literária teve início em 1945, com a publicação de alguns poemas na revista Seara Nova. Três anos mais tarde, ingressou no Teatro-Estúdio do Salitre e no Teatro da Rua da Fé. Publicou as peças Isolda (1948), Contrabando (1950) e O Irmão (1965). Em 1950, foi um dos co-fundadores da revista literária Távola Redonda, que se assumiu como veículo de uma alternativa à literatura empenhada, de realismo social, que então dominava o panorama cultural português, defendendo uma arte autónoma.

Deixou ainda traduções e uma gravação discográfica de poemas seus intitulada «Um Monumento de Palavras» (1996). Alguns dos seus textos foram adaptados à televisão e ao cinema, como, por exemplo, Aos Costumes Disse Nada, em que se baseou José Fonseca e Costa para filmar, em 1983, «Sem Sombra de Pecado». David Mourão-Ferreira foi ainda autor de poemas para fados, muitos deles celebrizados por Amália Rodrigues, tal como «Madrugada de Alfama». Recebeu, em 1996, o Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores. David Mourão-Ferreira morreu em 1996, em Lisboa.

Revista Távola Redonda


Nos primeiros dias de fevereiro de 1950, com a data de 15 de janeiro, chegava ao público o fascículo 1 da revista Távola Redonda e que trazia como subtítulo a designção de "folhas de poesia". Seus diretores e editores eram António Manuel Couto Viana, David Mourão-Ferreira e Luiz de Macedo.

A nova revista literária que surgia, reinaugurava um estilo de publicações ausentes há oito anos, já que a última deste tipo, os Cadernos de Poesia, não vinha sendo editada desde 1942.

Os fascículos traziam as páginas que serviriam de capa já com poemas impressos. Todas as suas folhas eram constituídas com o mesmo papel e com a mesma cor para cada fascículo. Em relação à disposição da matéria publicada, a organização era da seguinte forma: nas primeiras páginas, publicava-se poesia; no meio ou final, estudos teóricos ou críticos.

Fica claro, segundo pensamento dos poetas da revista, que em primeiro lugar deve-se dar atenção à poesia, mais especificamente, a um tipo de poesia em que a imaginação deve ter papel preponderante. Poesia, que deve impor-se ao poeta como uma necessidade vital, poesia que deve ser feita principalmente pelos jovens, mas que deve reconhecer nos mais velhos um exemplo a seguir. Uma poesia lírica, e que, por ser pessoal, deve opor-se à tendência social de expressão do coletivo.

Portanto, a revista teve uma missão básica: acolher poetas novos, dando-lhes uma oportunidade e um lugar para publicarem suas produções. Uma das metas principais da revista é a revalorização do lirismo.

Decorrente de uma tradição lírica, inclusive encampada em termos teóricos pela revista, Távola Redonda apresenta, no conjunto de sua produção poética, uma poesia voltada para o próprio "eu" do poeta. Portanto, uma poesia pessoal, característica fundamental do lirismo.

A revista durou quatro anos, de janeiro de 1950 a julho de 1954. Távola Redonda, apresentada como "folhas de poesia", teve sempre uma preocupação básica: "ser um órgão vivo de Poesia, um testemunho da Poesia de seu tempo". Para isso, buscou nos jovens poetas a sua principal fonte de colaboração.

Avaliação crítica

A poesia de David Mourão-Ferreira pode ser dividida em três vertentes básicas: a de lírica amorosa, a de erotismo lírico e a poesia de revalorização do mito. O mito aparece na poesia de David Mourão-Ferreira, como por exemplo, no poema "Inscrição sobre as Ondas", em que um deus anuncia ao poeta que não irá só na "secreta viagem", embora a desejada companhia tenha ficado apenas na promessa segredada pelo deus.

No poema "A secreta Viagem", o mito está presente, embora de uma forma velada, metafórica. Quando Mourão-Ferreira escreve "figuras de legenda...Olhos vagos, perdidos.../ Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...", podemos ter em mente a própria figura do poeta, com seus "olhos vagos e perdidos", do eu lírico e a do próprio poema, do labor poético, quando diz que "por entre nossas mãos, o verde mar escoa...".


Em "Morada", também percebemos a presença do mito. Há referências claras ao Olimpo e ao Monte Parnaso: "era a colina grega! / Em sonhos, a colina / ...Mas a vida nem chega / a não nos dar razão... / Por um tímido preço / um deus nos apontou / na Morte, o endereço...". Podemos perceber as relações com o mito, também, através de seres ou entidades como Vida e Morte, forças antagônicas, grafadas com letra maiúscula. Esse fato é recorrente em muitos de seus poemas, como por exemplo, em "A Secreta Viagem", onde aparece a palavra Mar, com letra maiúscula. O que é comum também em seus poemas, é o constante aparecimento da Lua e do Sol, como deuses, grafados com letras maiúsculas, e novamente temos as forças opostas, antagônicas.


Em David Mourão-Ferreira, o erotismo está mais presente nos poemas "Outono", "Nocturno" e "Espionagem". O termo seio é frequente na poesia de Mourão-Ferreira. No poema "Nocturno" constitui um motivo central. É à sua volta, sob as diferentes formas sinônimas espalhadas por cada uma das estrofes - seio, busto, colo, peito -, que o poema, e o sensualismo, se desenvolvem. Na própria forma que sugere um círculo, por iniciar e terminar com o mesmo verso, apenas ligeiramente modificado, está a imagem poética do "desenho redondo do teu seio" do primeiro verso, ou do "desenho redondo do teu peito" do último.


Alguns dos motivos líricos mais comuns aparecem no poema "A Praia do Encontro", ou seja, o desejo de fuga, o ensinamento que leva o poeta a uma atitude de fechar-se em si próprio, o consequente alheamento, também resultado de uma desilusão. Há de se levar em consideração a consciência romântica do sentir-se inútil por haver falhado no amor: "Esta imaginação de sal e duna,/ inquieta e movediça como areia,/ ergue, isolada, a praia, mais a espuma / que sereia nenhuma / saboreia...". E parece que há a aceitação mórbida de um castigo, de uma espécie de auto-flagelo, quando o poeta diz que "ali estarei, à tua espera, morto, / ou vivo em minha morte / transitória...".


Essa temática do sofrimento, da auto-punição por ter falhado no amor, indica a tendência do poema, lamentosa e impregnada de uma melancolia e de um sentimento de solidão que se reflete, principalmente na primeira e na terceira estrofes.


No poema "Outono", há uma grande carga de erotismo e uma busca da fuga do sonho. Há uma motivação do erotismo que flui de uma temática em que o amor e a posse estão sempre presentes, como forças similares. Há uma tentativa, por parte do poeta, como foi dito acima, de não permanecer em estado onírico, em buscar sua fuga do sonho, do torpor, porém, primeiramente não o consegue: "seria bom dormir assim,/ ao deus-dará, como eu desejo.../ mas o teu seio é que não quis:/ tremeu demais sob o meu rosto.../ agora nu, será feliz,/ sob o afago do sol posto...". Podemos notar que só há prazer quando o sol se põe, ou seja, uma visão poética um tanto romântica.


Notemos que, novamente, um ser inanimado aparece grafado com letra maiúscula, "Outono", técnica recorrente na poética de David Mourão-Ferreira, e que nos remete à idéia de que "Outono" aqui, pode ser entendido como sonho. O poeta se pergunta se "seria Outono aquele dia", ou seja, ele não sabe se o fato descrito ocorreu no plano contingente (da realidade) ou no plano transcendente (da memória). Porém nos dois últimos versos, há a comprovação de que o ato amoroso, o toque dos seios em seu rosto, dos afagos, enfim, ocorreram no plano real. Houve predomínio da contingência sob a transcendência.


Em "Espionagem" a temática do erotismo está presente novamente. Porém aqui, sob uma forma mais bruta e intensa do que em "Outono". O poeta refere-se a termos como "mórbido apetite", "crueldade", e que nos remete a uma imagem de cópula, de um ato um tanto quanto selvagem, e até, se pensarmos na primeira estrofe, sadismo: "O mórbido apetite - a crueldade/ que cada um dentro de si trazia-/ atingiu, nesse dia,/ a saciedade...".

Nessa primeira estrofe podemos perceber que as pessoas só chegam à saciedade através da dor, que consequentemente lhes traz prazer. O poeta diz que cada um trazia dentro de si a crueldade, o mórbido apetite e que nesse dia sentiram-se satisfeitos, atingiram a saciedade, o orgasmo.

Na última estrofe do poema, temos a imagem de um casal, "anjos do inferno" extasiados após o ato sexual. Note-se aqui a caracterização do espaço, pois o poeta faz menção a "um espelho , no quarto", e que nos remete, claramente, a imagem de um quarto de motel.

Podemos perceber também a presença de uma profanação do sexo, ou seja, o ato sexual é visto aqui como um ato instintivo e não idealizado, como era comum no Romantismo.


Na poesia de David Mourão-Ferreira podemos levar em consideração a poesia "fingida", e aqui fingida está ligada a um conceito de poesia pensada, intelectualizada. Portanto, uma poesia correlacionada, por oposição, à poesia "sincera". Lembremos de Fernando Pessoa em "Autopsicografia".

A última estrofe do poema "Poesia de amor" exemplifica a consciência do fingimento como um problema de teorização poética. Por inspiração da amada, o poeta cantou às flores do pinho e nas margens das ribeiras, mas quando tomará conhecimento que o motivo foi só ela para "essas falsas canções, tão verdadeiras"?

O poeta diz "falsas canções", porque tem consciência de que são fingidas, criadas pelo "eu" lírico, e que, portanto, constituem ficção. E diz "tão verdadeiras"porque assim as considera vivencialmente, o poeta as considera verdadeiras, o homem, o autor. Podemos fazer ainda uma outra leitura do poema. Se as canções são falsas porque são fingidas, o motivo dessas canções é, porém, verdadeiro. E este motivo verdadeiro é o amor que o poeta dedica à inspiradora do poema.

POEMAS ANALISADOS NESTE ESTUDO:

Inscrição sobre as ondas

Mal fora iniciada a secreta viagem
um deus me segredou que eu não iria só.
Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que deus me segredou.

Secreta Viagem

barco sem ninguém ,anónimo e vazio,
ficámos nós os dois ,parados ,de mão dada ...
Como podem só os dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais,e de maneira, à proa...
Que figuras de lenda!Olhos vagos,perdidos...
Por entre nossas mâos , o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos,sem ver,a longínqua miragem...
Aonde iremos ter?- Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa ,passa...alheio aos meus sentidos.
-Desfeitos num rochedo ou salvos na ensseada,
a eternidade é nossa ,em madeira esculpidos!

Morada

Era a colina grega!
(Em sonhos, a colina...)
Que ninguém a defina!
- Era a colina grega...
Em sonhos, a colina.

Mas a Vida nem chega
a não nos dar razão:
autoritária e cega,
leva a colina grega
em outra direcção.

(Por um tímido preço,
um deus nos apontou,
na Morte, o endereço
de quem não se encontrou.)

Outono

Mas quem diria ser Outono
se tu e eu estávamos lá?
(Tínhamos sono...Tanto sono!
É bom dormir ao deus-dará...)

E sobre o banco do jardim,
ante a cidade, o cais e o Tejo,
seria bom dormir assim,
ao deus-dará, como eu desejo...

Mas o teu seio é que não quis:
tremeu de mais sob o meu rosto...
Agora, nu, será feliz,
sob o afago do sol-posto...

Seria Outono aquele dia,
nesse jardim, doce e tranquilo...?
Seria Outono...
Mas havia
todo o teu corpo a desmenti-lo.

Noturno

O desenho redondo do teu seio
Tornava-te mais cálida, mais nua
Quando eu pensava nele...Imaginei-o,
À beira-mar, de noite, havendo lua...

Talvez a espuma, vindo, conseguisse
Ornar-te o busto de uma renda leve
E a lua, ao ver-te nua, descobrisse,
Em ti, a branca irmã que nunca teve...

Pelo que no teu colo há de suspenso,
Te supunham as ondas uma delas...
Todo o teu corpo, iluminado, tenso,
Era um convite lúcido às estrelas....

Imaginei-te assim á beira-mar,
Só porque o nosso quarto era tão estreito...
- E, sonolento, deixo-me afogar
No desenho redondo do teu peito...

Espionagem

O mórbido apetite - a crueldade
que cada um dentro de si trazia -
atingiu, nesse dia,
a saciedade.
Baixo, brilhou, com sua luz rasteira,
um sol polar, de pálpebra pesada
- na lâmpada velada
à cabeceira.

O leito foi um estreito redondel;
o amor, um vidro sob um diamante:
pois tudo foi vibrante
e foi cruel.

O desgraçado par que te supunhas
bem ao abrigo de qualquer olhar,
num seguro lugar,
sem testemunhas!

Mas um espelho, no quarto, transmitia
aos anjos do Inferno, extasiados,
os férteis resultados
desse dia.

Praia do Encontro

Esta imaginação de sal e duna,
inquieta e movediça como areia,
ergue, isolada, a praia, mais a espuma
que sereia nenhuma
saboreia...

Quisesses tomar tu este veleiro,
que em secreto estaleiro construí,
sem velas, sem cordame, sem madeira
- mas branco, e todo inteiro
para ti...

Brilha uma luz de morte sobre o porto
saido mesmo agora da memória...
Ali estarei, à tua espera, morto,
ou vivo em minha morte
transitória...

Combinado. Que eu juro não faltar!
Contrário de Tristão, renascerei,
se pressentir, aérea, sobre o mar,
a sombra singular
do barco que te dei.

Poesia de Amor

Vieram aves negras em teu nome,
secas folhas de plátano e de tília...
Amargamente, a fonte segredou-me
tudo quanto eu sabia
da sorte de Marília;
e que Dirceu
poderei ser eu,
Ausente embora, continuo a endereçar-te mil endechas.
Não sei mais nada: sei amor. Assim destruo,
pela canção, a doentia
coloração das minhas queixas.
Bárbara escrava?
Que me importava!
Além do amor, o meu amor quer melodia.

Cantei às flores de pinho, verde e vivo;
cantei nas margens verdes das ribeiras.
- Quando hás-de ver que foste só motivo
para falsas canções,
tão verdadeiras?

Referências

BUENO, Jayme F. (org.) Literatura Portuguesa: O Modernismo, 1ª Fase. Curitiba:EDUCA, 1985.
BUENO, Jayme F. Távola Redonda: uma experiência lírica. Curitiba: EDUCA, 1983.

GARCEZ, Maria Helena N. Trilhas em Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. São Paulo: Moraes, 1989.

MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia não é difícil. Porto Alegre: Arte e Ofícios, 1996.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 8ª ed. São Paulo: Cultrix, 1970.

MOURÃO-FERREIRA, David. Obra Poética. 1º volume. Lisboa: Bertrand, 1980.

MOURÃO-FERREIRA, David. Obra Poética. 2º volume. Lisboa: Bertrand, 1980.

PAIXÃO, Fernando. O que é Poesia. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

PESSOA, Fernando. Poemas Escolhidos. São Paulo: Klick, 1997.




domingo, 12 de agosto de 2007

O mestre dos insultos


Thomas Bernhard é um dos maiores romancistas do sec. XX. Bernhard é um autor polêmico, amado e odiado. Romances seus como Árvores abatidas e Extinção são verdadeiras obras-primas que retratam a repulsa do indivíduo pelo meio ao qual pertence. Mas não só isso.


Ler Bernhard, além de ser uma aventura abissal, ontológica, é uma aventura linguística. Bernhard não usa parágrafos, constrói períodos muito longos e isso talvez afaste alguns leitores.Mas seu estilo é arrebatador, sombrio, sarcástico e crítico. É um crítico feroz principalmente em relação ao seu país, a Áustria. Critica seus costumes provincianos e a vida comum no seu cotidiano.


Em seus romances há muitos elementos autobiográficos, como por exemplo em Extinção. Nesse romance Bernhard dá voz ao personagem Franz-Josef Murau, um professor austríaco de literatura que vive auto-exilado em Roma, porque não suporta sua família e o meio em que seus pais vivem. E ele tenta de qualquer forma se distanciar ao máximo que pode de suas origens, ele tenta, através da palavra, se extinguir. Sua família, sua casa, sua cidade, enfim, lhe causam náuseas. Há uma passagem do romance que mostra bem isso:


"Adquiri o hábito de pensar constantemente (e de dizer!), minha mãe é repulsiva, minhas irmãs também, e estúpidas, meu pai é fraco, meu irmão um pobre idiota, todos eles são uns imbecis".


São petardos como esses que compõem o romance. Bernhard choca, instiga, provoca, ofende, insulta o leitor o tempo todo.A narrativa é densa, pesada e pela falta de parágrafos e de capítulos, durante a leitura nos sentimos sem fôlego. Mas sem coragem de abandonar o livro. É uma espécie de Voltaire do século XX. Thomas Bernhard, o mestre dos insultos.



sábado, 11 de agosto de 2007

Oficina de Poesia I - O Eu - lírico e a figura do poeta: construção e desconstrução em Fernando Pessoa e David Mourão-Ferreira


A palavra lírico vem de lira, instrumento musical utilizado pelos gregos. Muitas vezes, a leitura de um poema ou a contemplação de um quadro sensibiliza – nos, despertando em nós um estado emotivo ou lírico. O poema é a fixação material da poesia, é a decantação formal do estado lírico. São as palavras, os versos e as estrofes que se dizem e que se escrevem, e assim fixam e transmitem o “estado lírico” do poeta.


Para Carlos Felipe Moisés, importante estudioso e professor de Literatura Portuguesa da USP, em seu livro Poesia Não é Difícil, “o assunto preferido da maioria dos poetas, em todos os tempos, é o seu próprio Eu. Pode – se afirmar, sem medo de errar, que a poesia é, de modo geral, uma forma de autoconhecimento”. A partir desta afirmação do professor Carlos Felipe, podemos levar em consideração as primeiras estrofes do poema de Fernando Pessoa, “Autopsicografia”:


“ O poeta é um fingidor.Finge tão completamenteQue chega a fingir que é dorA dor que deveras sente”...

Este poema faz parte de um livro chamado O Cancioneiro, composto por poemas líricos, rimados e metrificados, de forte influência simbolista. “Autopsicografia” reflete sobre o fazer poético. Porém há de se perceber que o poeta parte de uma dor sua, real, integral. Só quem sente uma dor pode fingir que não sente.Podemos entender que todo poema é uma viagem interior, é a busca do poeta por si próprio. Diz Carlos Felipe Moisés que “o poeta é livre para escrever sobre o que quiser, mas quase sempre escreve sobre si mesmo”. E nunca ou quase nunca essa busca chega a seu fim. Carlos Felipe afirma que a poesia de autoconhecimento tem a força da tradição, que é a chamada tradição lírica. Essa tradição se caracteriza por uma idéia de confessionalismo, ou seja, “o poeta faz ao leitor confissões íntimas”, e também pelo sentimentalismo, pois o poeta lida principalmente com suas experiências afetivas.

Ao mesmo tempo em que notamos a presença do Eu lírico no poema, sabemos que além desta “voz do poeta”, há o escritor, a pessoa, o homem. Para Fernando Paixão, em seu livro O que é Poesia, “a profissão do poeta é armar símbolos, tecer caminhos imaginários sobre a página, oferecer ao seu companheiro de viagem, o leitor ou ouvinte, uma inusitada sensação: a intimidade das palavras, o enredamento caloroso dentro delas”. Portanto, há de se perceber também a figura do poeta como emissor, ao passo em que o leitor é receptor.Há experiências diversas de entendimento entre leitor, poeta e o seu Eu na poesia lírica.

Para David Mourão – Ferreira, o fenômeno lírico não é caracterizado pela natureza da emoção ou do motivo. O que caracteriza o lirismo é o aspecto involuntário, ou seja, as emoções que se apresentam ao poeta e se desenvolvem no decorrer da criação poética.David afirma que toda poesia é lírica e o lirismo é um ideal de equilíbrio, ou seja, ele que dá às grandes épocas da poesia a razão de ser.

Revista Orpheu

Em 1915 alguns poetas portugueses como Fernando Pessoa, Mário de Sá – Carneiro, Raul Leal, Augusto de Santa - Rita Pintor, Luís de Montalvor, Almada – Negreiros, Rui Coelho, Tomás de Almeida, Alfredo Gusado, Armando Côrtes – Rodrigues e o brasileiro, porém de passagem, Ronald de Carvalho, resolvem criar uma revista que sirva de porta – voz e concretização de seus ideais estéticos, com grande influência dos movimentos literários que estavam vigentes no resto da Europa. Nasce Orpheu, cujo primeiro número, correspondente a janeiro – fevereiro – março, aparece em 1915, sob a direção de Luís de Montalvor.

De acordo com as idéias estetizantes e confessadamente esotéricas, põem – se a criar uma poesia alucinada, chocante, irritante, irreverente, com o intuito de provocar a burguesia, símbolo acabado da estagnação em que se encontra a cultura portuguesa. A poesia entroniza – se como a forma ideal de expressar o espanto de existir, sintetizando toda uma filosofia de vida estética, sem compromisso com qualquer ideologia de caráter histórico, político, científico ou equivalente. A aderência ao modernismo significa, pois, o rompimento com o passado, inclusive com o Simbolismo.

A revista corresponde a um momento em que as consciências se elevam para planos de indagação universal, para a constatação de uma angústia geral, fruto do contexto conturbado em que passava a Europa e o mundo no início do século XX. A Primeira Guerra Mundial é a manifestação nítida dessa crise provocada pela necessidade de abandonar as velhas e tradicionais formas de civilização e cultura (de tipo burguês) e de buscar novas fórmulas substitutivas.

O homem perante sua própria imagem angustia – se, também pela ausência de Deus ou de qualquer verdade absoluta capaz de explicar – lhe a falta de sentido da existência.

Um segundo número do Orpheu é publicado, em 1915, sob direção de Fernando Pessoa e Mário de Sá – Carneiro. Um terceiro número, embora no prelo, não chega a sair, pois Mário de Sá – Carneiro, que vem sustentado financeiramente a revista, suicida – se. Dos participantes no Orpheu, merecem destaque Fernando Pessoa, Mário de Sá – Carneiro e Almada – Negreiros.

Os principais heterônimos

Fernando Pessoa criou 72 heterônimos. Começou a inventar na infância nomes para assinar escritos diversos. Foi assim que o poeta se multiplicou em várias pessoas: de Alexander Search, autor de versos em inglês, ao Dr. Pancrácio e Maria José, a que mais se destacou entre as mulheres.

Os heterônimos propriamente ditos, com identidade e até horóscopo próprios, só surgem em 8 de março de 1914, quando, de uma só vez, escreve O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro. No mesmo ano, nasceriam Álvaro de Campos e Ricardo Reis. Em ordem alfabética, o perfil dos principais.

Alberto Caeiro – Mestre do poeta e de todos os heterônimos. É um camponês autodidata, sem erudição. Nasce em Lisboa em 1889 e morre na zona rural em 1915, de tuberculose. Por causa da saúde frágil, viveu quase toda a vida na casa da tia-avó numa pequena vila do Ribatejo. É descrito como loiro, pálido e de olhos azuis. É autor de O Guardador de Rebanhos, composto por 49 poemas. O processo criativo espontâneo traduz a busca fundamental de Caeiro: a completa naturalidade.

Álvaro de Campos – Nasce em Tavira, no Algarve, em 1890. É engenheiro e vive em Lisboa sem exercer a profissão. Fez uma longa viagem ao oriente, período em que escreve Opiário. Nesse poema, o engenheiro Campos, influenciado pelo Simbolismo, ainda metrifica e rima. Escreve quadras, estrofe de quatro versos. Em seguida, Campos envereda pelo Futurismo, adotando um estilo febril, entre as máquinas e a agitação da cidade. Os poemas de Álvaro de Campos são marcados pela oralidade e prolixidade que se espalha em versos longos, próximos da prosa. Despreza a rima ou a métrica regular. Despeja seus versos em torrentes de incontrolável desabafo. Em 1928, publica uma obra-prima, “Tabacaria”. Foi ele que arruinou o noivado de Pessoa com Ophélia. É alto, de cabelos pretos e usa monóculo.

Bernardo Soares – Tem vida modesta como assistente contábil em Lisboa. As datas de nascimento e morte são desconhecidas. O poeta o conheceu numa cantina chamada Pessoa. É o autor do Livro do Desassossego.

Ricardo Reis – Nasceu no Porto em 1887. Educado pelos jesuítas, torna-se médico. É um erudito que defende os valores tradicionais. Monarquista, exila-se no Brasil assim que é instaurada a república portuguesa. Escreve odes inspiradas em Horácio. A linguagem de Ricardo Reis é clássica. Usa um vocabulário erudito e, muito apropriadamente, seus poemas são metrificados e apresentam uma sintaxe rebuscada.

Avaliação crítica

No antológico poema “Aniversário”, de Álvaro de Campos, poetiza-se uma situação constante, tópica na lírica do heterônimo modernista: a do confronto entre dois tempos, entre duas horas (outrora e agora) e a do reconhecimento de uma defasagem entre um eu primitivo e o eu atual.

O poema principia com uma evocação do “tempo em que festejavam o dia dos meus anos”, o tempo da infância em que “eu era feliz e ninguém estava morto”. Juntamente com este tempo de felicidade evoca-se um espaço ideal, o espaço das origens, “a casa antiga”, atente-se para a caracterização “antiga”, onde havia “a alegria de todos”. Em oposição a este eu primeiro, o poema coloca o eu de hoje, que se define através de imagens de despojamento, de privação: “O que eu sou hoje é terem vendido a casa, / É terem morrido todos, / É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...”. Um espaço de raízes se perdeu, houve uma extinção de seres queridos e uma perda da própria chama interior. A identidade primeira, feliz, já não se dá.

Esta problemática da descontinuidade interior, da perda de uma identidade primeira que o leva a sentir-se “estrangeiro aqui como em toda parte” (“Lisbon Revisited”), que é responsável pelo estilhaçamento do eu, “sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir” (“Apontamento”), constitui uma das obsessões do universo Álvaro de Campos, aparecendo em numerosos outros poemas.

No poema “Lisbon Revisited”, assim como o tempo estilhaça o eu, e que o impossibilita de encontrar-se consigo próprio, também o impossibilita de reconhecer o mundo, onde o passado não pode ser recuperado. O estranhamento em que o poeta sente em relação a Lisboa de sua infância já começa pelo título do poema, que é grafado em inglês. A volta ao passado não lhe traz nenhuma sensação de gozo ou prazer por revisitar sua antiga cidade. Lisboa aqui está perdida para sempre, e como diz Teresa Cristina Cerdeira, “nenhuma memória involuntária lhe devolve a magia do passado; a sua visão só chega aos bocados, em fragmentos fatídicos que não recompõem a identidade”.

Nesta busca de si mesmo, nesta indagação acerca da própria identidade, Álvaro de Campos, num poema fundamental para a compreensão de sua lírica, “Pecado Original”, propõe: “Sou quem falhei ser”. Aqui podemos perceber que o eu atual só existe por um outro eu do passado não ter existido. Há nesta fórmula com que se autodefine a consciência de ser um aborto, a consciência de ser alguém de certa forma errado e falso, e o termo “errado” é muito recorrente e importante para os poetas do Orpheu, ou seja, a consciência de não haver atingido uma identidade verdadeira.

A infância em “Pecado Original” adquire, portanto, nova dimensão; não constitui apenas a infância histórica, mas uma outra infância, atemporal, a infância das origens num outro estado, também num outro espaço. Todos os sonhos, tudo quanto há e pode haver remete a esse estado original, está vinculado a esse estado outro de que a alma padece diante da nostalgia.

Paralelamente a esta consciência de incompletude existencial, de enfermidade, há uma ânsia de salvação, a expectativa de um dia em que ela se consolide, como o exprime o poema “Magnificat”. Note-se que a imagem da “casa”, também presente no poema “Aniversário”, reaparece também neste. O anseio por voltar às origens consolida-se na imagem do “recolher a casa”, tendo o prefixo re todo seu valor originário. É significativo que no poema “Aniversário” a “casa” esteja caracterizada como “antiga”, e este é um adjetivo recorrente em Alberto Caeiro como em Álvaro de Campos. A “casa antiga” condensa toda uma complexa força expressiva, já que é, ao mesmo tempo, matriz, centro gerador da vida como também lugar do carinho, do afeto e do acolhimento. “Recolher” à “casa antiga” é retornar ao acolhimento amoroso das origens, ao amor. A nostalgia de “recolher a casa” manifesta a nostalgia de um centro, de um foco de calor para o qual Álvaro de Campos está voltado.

POEMAS ANALISADOS NESTE ESTUDO:

Aniversário

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhaslágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Lisbon revisited

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) ­
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul ­ o mesmo da minha infância ­,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!

Apontamento

A minha alma partiu-se como um vaso vazio.
Caiu pela escada excessivamente abaixo.
Caiu das mãos da criada descuidada.
Caiu, fez-se em mais pedaços do que havia loiça no vaso.

Asneira? Impossível? Sei lá!
Tenho mais sensações do que tinha quando me sentia eu.
Sou um espalhamento de cacos sobre um capacho por sacudir.

Fiz barulho na queda como um vaso que se partia.
Os deuses que há debruçam-se do parapeito da escada.
E fitam os cacos que a criada deles fez de mim.

Não se zanguem com ela.
São tolerantes com ela.
O que era eu um vaso vazio?
Olham os cacos absurdamente conscientes,
Mas conscientes de si mesmos, não conscientes deles.

Olham e sorriem.
Sorriem tolerantes à criada involuntária.
Alastra a grande escadaria atapetada de estrelas.
Um caco brilha, virado do exterior lustroso, entre os astros.
A minha obra? A minha alma principal? A minha vida?
Um caco.
E os deuses olham-o especialmente, pois não sabem por que ficou ali.

Pecado original

Ah, quem escreverá a história do que poderia ter sido?
Será essa, se alguém a escrever,
A verdadeira história da humanidade.
O que há é só o mundo verdadeiro, não é nós, só o mundo;
O que não há somos nós, e a verdade está aí.

Sou quem falhei ser.
Somos todos quem nos supusemos.
A nossa realidade é o que não conseguimos nunca.

Que é daquela nossa verdade — o sonho à janela da infância?
Que é daquela nossa certeza — o propósito a mesa de depois?

Medito, a cabeça curvada contra as mãos sobrepostas
Sobre o parapeito alto da janela de sacada,
Sentado de lado numa cadeira, depois de jantar.

Que é da minha realidade, que só tenho a vida?
Que é de mim, que sou só quem existo?

Quantos Césares fui!
Na alma, e com alguma verdade;
Na imaginação, e com alguma justiça;
Na inteligência, e com alguma razão —
Meu Deus! meu Deus! meu Deus!

Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!
Quantos Césares fui!

Magnificat
Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia !


Nota - Oficina de Poesia

No dia 22 de maio de 2006 ministrei uma oficina de poesia na Fundação Cultural de Curitiba, intitulada O Eu - lírico e a figura do poeta:construção e desconstrução em Fernando Pessoa e David Mourão-Ferreira.

Nesse meu estudo analiso poemas de Fernando Pessoa principalmente durante a época em que publicou na Revista Orpheu. O critério para a análise dos poemas partiu da idéia do fazer poético e da relação do poeta com sua obra. Postarei alguns dos poemas que analisei em meu estudo.

Os poemas de David Mourão-Ferreira que selecionei para minha análise também foram publicados em revista, na Távola Redonda, entre 1950 e 1954. Postarei todo meu trabalho em duas partes. A primeira é minha análise da poética de Fernando Pessoa, e a segunda de David Mourão-Ferreira.

quarta-feira, 1 de agosto de 2007

Velho mestre


Ontem à tarde mais uma vez fui aporrinhar o meu velho mestre, Prof. Jayme. Dessa vez não esbarrei propositalmente com ele pelos corredores do prédio de Ciências Humanas da Católica, mas fui até sua casa. Motivo? Livros. E também, claro, visitar o professor que muito me influenciou.


Fui especialmente para pegar emprestado um livro de Raul Brandão, Húmus. Mas quando entrei em sua biblioteca, com as paredes forradas por estantes entupidas de livros, edições portuguesas raríssimas, tive vontade de não sair mais de lá. Pensei, "bem que ele podia dar alguns desses livros pra mim, nem vai fazer falta". Havia uma coleção de contos de Eça de Queiroz maravilhosa. Alguns romances esgotados de Manuel da Fonseca, edições portuguesas de Alves Redol, Lobo Antunes e por aí vai.


Sentado na confortável poltrona eu olhava maravilhado aquelas estantes e me sentia parte delas. Não sei por quê. É um mundo paralelo, à parte, fantástico. Falávamos sobre alguns desses autores e o tempo passava rápido. Não era suficiente para falarmos sobre todos aqueles nomes nas capas dos livros. Não tive coragem de pedir mais alguns livros emprestados, não achei conveniente. Mas tudo bem. Fiquei muito feliz por rever o velho mestre e satisfeito por sair de lá com Raul Brandão dentro da mala.


Pena que ele tem que voltar para a estante!


terça-feira, 31 de julho de 2007

LAVOURA AZUL

Trabalho nuvens como quem trabalha
o chão que é seu, mas eu não tenho chão.
Cultivador da natureza falha,
planto no azul o que de azul me dão.

Sobre o campo de nuvens cresce a palha
de sonho e cobre a minha solidão.
E esse abrigo de sonhos me agasalha
contra os falsos azuis que vêm e vão.

Minha roça no ar produz estrelas,
mas eu não tenho mãos para colhê-las,
nesta safra de azul que é nova e antiga.

Sou lavrador do quanto não se lavra
e preciso que eu ceife na palavra
o maduro do azul e a sua espiga.

José Chagas - De Lavoura Azul (1974)

Sonetos do Maranhão


José Chagas é praticamente um anônimo aqui no sul do Brasil. É um poeta que publicou e ainda publica muito. Dentre suas obras mais significativas estão Os Canhões do Silêncio (1979) e Lavoura Azul(1974).


Chagas é um hábil sonetista que cultua rimas preciosas e parece dedicar uma preferência toda especial pelo metro curto: há numerosos quadrissílabos, pentassílabos e até linhas de apenas duas ou três sílabas métricas.


Sem dúvida um grande poeta que não tem o merecido reconhecimento. Sua obra está praticamente restrita ao Maranhão e à Paraíba, seu estado de origem. Normalmente Chagas apresenta os poemas sob um título único, e cada poema aparece enumerado.


Em alguns momentos, sua poética lembra um pouco Manuel de Barros, mais em sua fase madura. Nos seus primeiros escritos há marcada influência de Agusto dos Anjos. Grande poeta anônimo esse Chagas. Grande mesmo.

domingo, 29 de julho de 2007

Outono


Mas quem diria ser Outono

se tu e eu estávamos lá?

( Tínhamos sono...Tanto sono!

É bom dormir ao deus-dará...)


E sobre o banco do jardim,

ante a cidade, o cais e o Tejo,

seria bom dormir assim,

ao deus-dará, como eu desejo...


Mas o teu seio é que não quis:

tremeu de mais sob o meu rosto...

Agora, nu, será feliz,

sob o afago do sol-posto...


Seria Outono aquele dia,

nesse jardim, doce e tranquilo...?

Seria Outono...

Mas havia

todo o teu corpo a desmenti-lo.


David Mourão-Ferreira

Morada

Era a colina grega!
( Em sonhos, a colina...)
Que ninguém a defina!
- Era a colina grega...
Em sonhos, a colina.

Mas a vida nem chega
a não nos dar razão:
autoritária e cega,
leva a colina grega
em outra direcção.

( Por um tímido preço,
um deus nos apontou,
na Morte, o endereço
de quem não se encontrou.)

David Mourão-Ferreira

Vergílio Ferreira e o nada


Sabe aqueles autores que descobrimos meio que sem querer? Pois é. Eu descobri Vergílio Ferreira dessa maneira, completamenmte por acaso, e serei eternamente grato ao acaso.


A descoberta de Vergílio devo ao Prof. Marcelo Franz, estudioso da obra do romancista português, e que analisou em sua tese de doutorado a obra do autor de Aparição. Sua tese foi publicada em forma de livro no ano passado, sob o título de A Inquietude da Memória - O Significado do lembrar em romances de Vergílio Ferreira.


Esse livro do professor Marcelo serve como exemplo para o cenário crítico atual, pois a obra de Vergílio Ferreira ainda está muito restrita ao meio acadêmico, e mesmo assim Vergílio é um autor muito pouco difundido no Brasil.


O primeiro livro que li de Vergílio Ferreira foi Aparição, e foi um choque. Eu nunca havia me deparado com um romance como aquele, que deixa a gente completamente mudado após a leitura. Esse livro mudou minha visão de "romance" e definitivamente minha visão de mundo. Isso mostra que as leituras que fazemos são importantíssimas em nossa formação, principalmente quando descobrimos autores e nos deparamos com obras que nos atingem, que nos instigam. Assim é Vergílio Ferreira. Um autor que deixa marcas profundas, um verdadeiro artista que fez de sua arte sua própria razão de viver, pois para o autor, como relatado em Cântico Final, a vida sem a arte não tem sentido.


Após a leitura de alguns livros que emprestei da Biblioteca Pública do Paraná e da Biblioteca Central da pucpr, fui atrás de seus livros. Hoje tenho alguns exemplares raros, como a segunda edição de Vagão "j", Mudança, Até ao Fim e Em nome da Terra. Muitas das leituras que fiz da obra de Vergílio Ferreira devo também ao professor Marcelo Franz, que me emprestou alguns exemplares algumas vezes.


Bem, a obra deste mestre português não vem até nós. Nós temos que encontrá-la de alguma maneira e não desistir de procurá-la, porque às vezes é difícil. Depois da leitura do primeiro livro a nossa visão sobre literatura, arte e vida muda completamente. E assim são os grandes autores. Literatura, arte e vida.

sábado, 28 de julho de 2007

Até no exílio


Espingardas e Música Clássica. Esse é o título do mais significativo romance de Alexandre Pinheiro Torres, crítico, professor e ensaísta português auto-exilado em País de Gales. Deparei-me com sua ficção por acaso, pois só conhecia sua obra de não-ficção, principalmente suas obras de análise sobre o Neo-Realismo português.


Nesse romance, que só foi publicado 24 anos depois de ter sido escrito, Torres faz uma releitura de Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. Usa os mesmos nomes dos personagens, porém o universo é outro. A ação transcorre ao longo de quinze dias entre 1961 e 1962, em pleno regime salazarista, e há uma quebra lógica com os caracteres românticos de Camilo. Thereza, por exemplo, não é a virgem recatada que obedece ao pai, mas sim uma universitária rebelde que vê na figura do pai, Tadeu de Albuquerque, o totalitarismo de Salazar.


Outro personagem relevante é o herói, Simão Botelho, que no romance de Camilo é o estereótipo do herói romântico, mas em Espingardas e Música Clássica, é um funcionário da fábrica de Tadeu Albuquerque e grevista revolucionário.


Deve-se levar em consideração o título do romance, que faz menção à ditadura de Salazar de uma maneira pouco sutil. No final de 1961 Portugal estava em guerra com a Índia, ou seja, disputando Goa, que era colônia portuguesa. E Portugal estava em grande desvantagem, portanto nas rádios, ao invéz de dar as notícias da guerra e das greves que estavam acontecendo na cidade fictícia de Frariz, tocava música clássica o dia todo.


Pode-se dizer que é uma obra de protesto, mas vai muito além do simples manifesto panfletário. Obra pungente que não teve seu merecido reconhecimento. Grande romance de um escritor que foi mais reconhecido como crítico.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Távola Redonda

Poetas: vamos dar as mãos! De novo
Se escute em nós uma canção de ronda.
Poesia - única távola redonda
Com pão e vinho para todo o povo.

Quem tiver sede, beba deste vinho.
Quem tiver fome, coma deste pão.
Só o poeta vivo é nosso irmão;
P´ra ele, nada é fim, mas sim caminho.

Há flores no centro? Vou chamar-lhes fé.
Flori com ela vossa botoeira:
A voz do poeta é pura e verdadeira
Se - em Deus? nos outros? - sonha e crê.

António Manuel Couto Viana

quinta-feira, 26 de julho de 2007

Entrevista com Moacyr Scliar


Descobri Moacyr Scliar assistindo ao programa do Bóris Casoy (outro judeu! Coincidência?) em 2003, na TV Record. Moacyr falava sobre o plágio de seu livro Max e os Felinos, e desde então o universo deste autor nunca deixou de me acompanhar. A Porto Alegre mítica que vemos em A Guerra no Bom Fim ou em O Ciclo das Águas serve de espaço para diversos conflitos, judaicos ou não.

É este Scliar que me atrai sobremaneira, o judeu que escreve sobre seus próprios medos, suas angústias e prazeres. É este Moacyr Scliar que muitas e muitas vezes me levou às lágrimas, que escolhi como tema de análise da minha monografia da especialização em Literatura Brasileira na pucpr.

Para um aprofundamento maior de meu estudo de O Centauro no Jardim( obra que analiso em minha monografia), procurei o próprio autor para uma entrevista. Moacyr cedeu gentilmente a entrevista que segue abaixo, e que estará em anexo em meu trabalho da especialização.
Viva o escritorzinho do Bom Fim!

Entrevista

Daniel Osiecki - Por que a condição judaica está diretamente ligada ao sofrimento, à tragédia?

Moacyr Scliar - Por causa da longa história de perseguições, discriminação e extermínio. A isto se acrescenta o fenômeno da diáspora: tratava-se de um grupo humano que vagava de um país para outro e muitas vezes era visto com estranheza e hostilidade.

D.O. - Em Saturno nos Trópicos você fala sobre contágio psíquico. Notamos que há características de melancolia presentes na condição judaica, seja no modo de pensar, no modo de viver, de escrever, etc. Isso é milenar e passa de geração para geração.No caso do judaísmo há contágio psíquico?

M.S. - Certamente, mas o que predomina é a condição comum, que é geradora de tristeza, de melancolia.

D.O. - Pode-se dizer que a melancolia presente no judaísmo é atávica?

M.S. - Pode-se dizer que ela tem uma história. Mas se por "atávica" queremos dizer"herdada, genética" aí a afirmação é duvidosa.

D.O. - Em O Centauro no Jardim notamos certa inconstância no pensamento de Guedali em relação a sua condição. Conflito tipicamente judaico. Para você o que mais caracteriza esse conflito?

M.S. - Judaísmo envolve um forte problema de identidade, mais nítido naqueles que, como Guedali, são filhos de imigrantese que estão constantemente se perguntando quem são, qual a cultura a que pertencem: a de casa, a da rua (escola, clube...) ou ambas?

D.O. - Pode-se dizer que esse aceitar/não-aceitar sua condição de judeu(centauro), aproxima Guedali à náusea sartreana?

M.S. - Sim, há um componente existencial, mas não é o que predomina. O problema é psicológico e cultural.

D.O. - Moacyr, dentre tantos conflitos que Guedali trava consigo próprio, o principal é o fato de que ele é metade homem e metade cavalo. Sabemos que o cavalo nunca foi o animal com quem os judeus tivessem mais afinidade.História ou lenda, não sabemos, mas esse fato é mais simbólico do que histórico. Portanto, Guedali sendo um judeu centauro, não faz desse conflito mais dramático ainda?

M.S. - Certamente. Ali temos um judeu vivendo na região do"centauro dos pampas", o gaúcho, e mais, sendo ele próprio centauro. Ou seja: eu não poderia imaginar carga maior de desconforto para o meu personagem...

D.O - Em outros romances seus como Os Deuses de Raquel e Os Voluntários, observamos que você explora o encontro com a cultura diferente. No caso deOs Deuses de Raquel, a pequena Raquel sai do colégio iídiche e vai para um colégio católico. Fato que inicia um conflito interior que a marcará por toda sua vida. Em Os Voluntários há o conflito entre Benjamin e Samir,aquele judeu, este palestino. No caso de Guedali, o conflito maior está presente em sua relação com o aceitar/não-aceitar de sua condição ou com a sociedade que o vê como aberração?

M.S. - Com as duas situações. É um conflito múltiplo, mas que termina em simples acomodação: "agora está tudo bem".

D.O. - Para encerrar, esse conflito consigo próprio, com a família e com a sociedade, aproxima Guedali a Gregor Samsa?

M.S. - Em parte, mas devemos notar que o conflito de Kafka é existencial, sartreano. As circunstâncias históricas, políticas, culturais, que destaco no livro, pesam muito pouco numa obra como A Metamorfose, ainda que a ficção kafkiana possa ser vista como antecipação do totalitarismo.

Ave! Torga


No próximo 12 de agosto se completará o centenário de nascimento do Dr. Adolfo Correia da Rocha, brilhante médico, porém mais conhecido como brilhante escritor, Miguel Torga. Dr. Miguel Torga se aventurou por tudo quanto é gênero literário, porém merecem mais destaque seus contos e romances. Mais ainda os contos. Os obscuros e fantásticos Contos da Montanha, frios, gelados, lúgubres Contos de uma Montanha metafísica às margens do Douro.

Torga até se aventurou no Neo-Realismo com seu romance Vindima, digamos que para se afastar do "formalismo" estético do presencismo, mas não encontrou raízes perpétuas no neo-realismo. Torga foi um autor único em Portugal, um escritor que esperava encontrar explicação para a angustiante condição humana, por isso a metáfora da montanha, como diz Massaud Moisés, "Miguel Torga é sempre o mesmo homem de pés fincados na terra transmontana".

Autor que, como Vergílio Ferreira, não encontrou ecos dentro da literatura portuguesa do século XX. São casos isolados. Cada um a seu próprio modo.

Ave! Torga!!