domingo, 27 de fevereiro de 2011

MOACYR JAIME SCLIAR


Hoje acordei com a notícia da qual eu vinha tentando fugir, tentando negar, tentando me esconder: Moacyr Scliar morreu! O escritor gaúcho, com 73 anos, faleceu nesta madrugada no Hospital das Clínicas de Porto Alegre, por volta de 01h00. Com Moacyr morre uma tradição muito restrita na literatura brasileira, adotada por poucos, que é a abordagem da tradição judaica.

Scliar era leitor de grandes autores de origem judaica, como Isaac Bashevis Singer, Saul Bellow, Philip Roth, Isac Babel, Michael Gold e outros, o que contribuiu para que ele próprio se encontrasse nesse hall seleto de grandes contadores de histórias, de grandes narradores. A influência de narradores bíblicos é notável em sua obra, como nos romances A estranha Nação de Rafael Mendes, A mulher que escreveu a Bíblia, Os Vendilhões do Templo, Manual da Paixão Solitária e em vários contos.

A questão da identidade judaica foi explorada à exaustão por Scliar, e são as obras que tratam desta temática que apresentam maior valor literário. Seu romance de estreia, A Guerra no Bom Fim (1972) narra as peripécias de um menino pelas ruas do bairro Bom Fim, em Porto Alegre, durante os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial. O universo judaico ainda é explorado de forma embrionária neste romance de formação.

A seguir veio O Exército de um Homem só (1973), espécie de uma releitura satírica de Animal Farm, de George Orwell, e uma sátira às ideologias de esquerda. Com o romance que veio a seguir, Os Deuses de Raquel (1975)Moacyr alcançou a excelência literária que já experimentava em suas obras anteriores. Os dramas vividos pela jovem Raquel, filha de imigrantes judeus húngaros, alcançam grandes doses do melhor do que se convencionou chamar de humor judaico, ou seja, um humor existencial, metafísico, amargo.

A questão da identidade judaica é bastante explorada neste romance. Raquel é confrontada constantemente por sua identidade híbrida, e desta maneira ela não consegue transpor as dificuldades de encontrar-se a si própria em um meio que não a aceita.

Mas os romances que trataram com mais perícia da questão da busca por uma identidade pacífica, unificadora, foram O Ciclo das Águas (1975) e O Centauro no Jardim (1980), este último sua obra prima. O Centauro no Jardim narra em primeira pessoa as agruras e percalços de Guedali, um filho de imigrantes judeus russos que nasce centauro. A obra segue um estilo que foi muito explorado por Scliar nos anos 60, 70 e 80, ou seja, uma narrativa fantástica, com acontecimentos que extrapolam o real, a exemplo de Murilo Rubião e de Franz Kafka.

Guedali, sentindo-se infeliz e insatisfeito em qualquer meio que venha a integrar, decide, após encontrar Tita, uma centaura, partir para o Marrocos e se submeter à uma operação que o transformará, definitivamente, em um ser humanno completo e, aparentemente, normal. Mas não é o que acontece. A condição humana não traz a Guedali e a Tita a normalidade que buscavam, pelo contrário. A metamorfose serviu para gerar mais dúvidas, mais conflitos e assim ambos permanecem imersos em um labirinto físico e existencial.

Outras tantas obras de Scliar tratam desta temática, seja conto, romance ou ensaio. Eu sempre ficava à espera de algum novo lançamento de Moacyr a cada ano que passava, sempre esperando o mestre se superar de obra para obra. A qualidade literária de Scliar permaneceu até seu último romance, Eu vos abraço, milhões (2010), pois é muito comum a qualidade literária de alguns escritores se perder com novas publicações, ainda mais quando o escritor produz intensamente, como era o caso de Scliar.

Eu já tive o privilégio e a infelicidade de ler toda sua obra. Privilégio por tratar-se de Literatura da mais alta qualidade, com letra maiúscula; e infelicidade por não poder ler tudo novamente pela primeira vez. Realmente senti sua perda, da pessoa e do escritor, pois tive a honra e o prazer de conhecer ambos. Fica registrado aqui meu luto e minha singela homenagem.

Moacyr Jaime Scliar (1937 - 2011)