domingo, 8 de maio de 2011

CARTAS A SANDRA: ROMANCE EPISTOLAR E METALINGUAGEM


Quando Vergílio Ferreira morreu em 1996, ele deixou um romance inacabado, Cartas a Sandra. Esse breve romance é composto por capítulos em forma de cartas, e há uma clara alusão ao próprio fazer literário. As cartas são escritas por Paulo, protagonista de Para Sempre (1983)e são dirigidas a Sandra, sua esposa, falecida no romance anterior.

As cartas não seguem temas específicos nem tratam de assuntos muito claros, pois são, na verdade, as reflexões de Paulo sobre sua convivência com Sandra. Em momento algum há diálogos, pois Paulo se dirige à sua esposa morta, e o faz de maneira bastante diferente do que se lê em Para Sempre. Em Para Sempre Paulo constroi a imagem de Sandra de uma forma muito mais idealizada, mais distante, ao passo em que nas cartas Paulo se despe de certos pudores sentimentais que o aprisionava a uma Sandra irreal.

Quem organiza as cartas e tece comentários acerca do critério de organização é a filha do casal, Xana. No início do livro há uma apresentação escrita por Xana que diz não saber se as cartas escritas por seu pai são de fato cartas ou se são textos que fazem parte de um romance inacabado. É citado por Xana o livro Para Sempre, escrito por Paulo, seu pai, portanto, há em Cartas a Sandra elementos muito comuns da pós-modernidade. Um exemplo claro disso é essa movimentação de vozes (polifonia) e o constante embaralhamento formal entre realidade e ficção, narração e narrativa.

A metalinguagem é tratada tanto por Xana, no prefácio fictício, quanto por Paulo em suas cartas. Em vários momentos Paulo se refere ao ato de escrever, não só às cartas, mas também ao seu romance Para Sempre. Desta maneira Vergílio Ferreira se antecipa à compreensão do leitor e tece implicações formais complexas muito elaboradas. O que mais chama a atenção em Cartas a Sandra é exatamente esse processo de decifração do texto proposto pelo(s) autor(es), pois há três vozes: a de Vergílio Ferreira (autor empírico) e as vozes de Paulo e Xana (autores-modelo).

Ainda há a hipótese de todas as cartas terem sido escritas por Xana, como parte de um romance escrito por ela. Nesse caso teríamos uma movimentação de narradores bastante intrincada, pois Xana deixaria de ser (dentro da narrativa de Vergílio Ferreira, autor empírico) autor-modelo e passaria a ser autor-empírico. O prefácio escrito por ela, nesse caso, não seria uma apresentação sobre seus critérios de escolha das cartas de seu pai, mas sim um prefácio falso, ficcional dentro da própria ficção.

Percebe-se desde a introdução de Cartas a Sandra que trata-se de uma obra típica de Vergílio Ferreira, com os elementos formais que o consagraram, como a prosa poética, fluxo de consciência, períodos longos, ausência de pontuação convencional, porém não deixa de ser um romance inovador. No início da apresentação de Xana ela diz que a última carta escrita por seu pai ficou inacabada, fato curioso que remete à morte do próprio Vergílio Ferreira.

A décima e última, que fui eu já a dactilografar, deixou-a incompleta por ter morrido subitamente enquanto a escrevia. (p.11)

Assim como a última carta de Paulo a Sandra ficou inacabada, o último romance de Vergílio Ferreira também ficou. Coincidências, ironias do destino que dão significados plurais a Vergílio. Não podia ter maneira melhor de despedir-se da vida. Como sempre em grande estilo.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

MOACYR JAIME SCLIAR


Hoje acordei com a notícia da qual eu vinha tentando fugir, tentando negar, tentando me esconder: Moacyr Scliar morreu! O escritor gaúcho, com 73 anos, faleceu nesta madrugada no Hospital das Clínicas de Porto Alegre, por volta de 01h00. Com Moacyr morre uma tradição muito restrita na literatura brasileira, adotada por poucos, que é a abordagem da tradição judaica.

Scliar era leitor de grandes autores de origem judaica, como Isaac Bashevis Singer, Saul Bellow, Philip Roth, Isac Babel, Michael Gold e outros, o que contribuiu para que ele próprio se encontrasse nesse hall seleto de grandes contadores de histórias, de grandes narradores. A influência de narradores bíblicos é notável em sua obra, como nos romances A estranha Nação de Rafael Mendes, A mulher que escreveu a Bíblia, Os Vendilhões do Templo, Manual da Paixão Solitária e em vários contos.

A questão da identidade judaica foi explorada à exaustão por Scliar, e são as obras que tratam desta temática que apresentam maior valor literário. Seu romance de estreia, A Guerra no Bom Fim (1972) narra as peripécias de um menino pelas ruas do bairro Bom Fim, em Porto Alegre, durante os primeiros anos da Segunda Guerra Mundial. O universo judaico ainda é explorado de forma embrionária neste romance de formação.

A seguir veio O Exército de um Homem só (1973), espécie de uma releitura satírica de Animal Farm, de George Orwell, e uma sátira às ideologias de esquerda. Com o romance que veio a seguir, Os Deuses de Raquel (1975)Moacyr alcançou a excelência literária que já experimentava em suas obras anteriores. Os dramas vividos pela jovem Raquel, filha de imigrantes judeus húngaros, alcançam grandes doses do melhor do que se convencionou chamar de humor judaico, ou seja, um humor existencial, metafísico, amargo.

A questão da identidade judaica é bastante explorada neste romance. Raquel é confrontada constantemente por sua identidade híbrida, e desta maneira ela não consegue transpor as dificuldades de encontrar-se a si própria em um meio que não a aceita.

Mas os romances que trataram com mais perícia da questão da busca por uma identidade pacífica, unificadora, foram O Ciclo das Águas (1975) e O Centauro no Jardim (1980), este último sua obra prima. O Centauro no Jardim narra em primeira pessoa as agruras e percalços de Guedali, um filho de imigrantes judeus russos que nasce centauro. A obra segue um estilo que foi muito explorado por Scliar nos anos 60, 70 e 80, ou seja, uma narrativa fantástica, com acontecimentos que extrapolam o real, a exemplo de Murilo Rubião e de Franz Kafka.

Guedali, sentindo-se infeliz e insatisfeito em qualquer meio que venha a integrar, decide, após encontrar Tita, uma centaura, partir para o Marrocos e se submeter à uma operação que o transformará, definitivamente, em um ser humanno completo e, aparentemente, normal. Mas não é o que acontece. A condição humana não traz a Guedali e a Tita a normalidade que buscavam, pelo contrário. A metamorfose serviu para gerar mais dúvidas, mais conflitos e assim ambos permanecem imersos em um labirinto físico e existencial.

Outras tantas obras de Scliar tratam desta temática, seja conto, romance ou ensaio. Eu sempre ficava à espera de algum novo lançamento de Moacyr a cada ano que passava, sempre esperando o mestre se superar de obra para obra. A qualidade literária de Scliar permaneceu até seu último romance, Eu vos abraço, milhões (2010), pois é muito comum a qualidade literária de alguns escritores se perder com novas publicações, ainda mais quando o escritor produz intensamente, como era o caso de Scliar.

Eu já tive o privilégio e a infelicidade de ler toda sua obra. Privilégio por tratar-se de Literatura da mais alta qualidade, com letra maiúscula; e infelicidade por não poder ler tudo novamente pela primeira vez. Realmente senti sua perda, da pessoa e do escritor, pois tive a honra e o prazer de conhecer ambos. Fica registrado aqui meu luto e minha singela homenagem.

Moacyr Jaime Scliar (1937 - 2011)

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

MOACYR SCLIAR SOFRE AVC E PERMANECE INTERNADO EM HOSPITAL DE PORTO ALEGRE


O escritor gaúcho Moacyr Scliar (73) sofreu um AVC no dia 17 de janeiro deste ano, enquanto se recuperava de uma cirurgia no intestino. Eu só fiquei sabendo desta triste notícia ontem à noite enquanto assistia ao Manhattan Connection, na Globo News. Lucas Mendes e Caio Blinder noticiaram com pesar o ocorrido e desejaram muita sorte e melhoras ao amigo da conexão.

Melhoras e sorte que eu também desejo ao grande escritor Moacyr Scliar. Grande escritor e grande homem, o qual eu tive o grande prazer em conhecer. Moacyr vinha com frequência a Curitiba, e sempre que eu podia ia encontrá-lo para conversar, perguntar, ouvir ou tomar um café.

Passei a me interessar pela obra de Scliar quando li o romance O Ciclo das Águas (1975), obra reveladora e sui generis, ainda na graduação em Letras, em 2004. Depois desse primeiro contato passei a dissecar sua obra com uma visão mais crítica, ou seja, passei de um simples leitor lendo desordenadamente a um interessado em questões mais complexas em sua obra, como a identidade judaica.

Eu cresci e evoluí como leitor lendo o Scliar, o que acabou por me conduzir, em 2007, à especialização em Literatura Brasileira, na qual eu defendi a monografia Um Herdeiro da Diáspora: a questão da identidade judaica em O Centauro no jardim, de Moacyr Scliar.

Quando soube do AVC fiquei muito triste,chateado e também preocupado, pois não li nem ouvi nenhuma notícia mais recente sobre seu estado de saúde. Eu li toda sua obra, dissequei suas narrativas, ficcionais ou não, e nesta noite mal pude dormir, tomado que estava por sentimentos ambíguos de preocupação e nostalgia. Desejo tudo de bom ao grande mestre Moacyr Scliar e uma recuperação rápida. Espero que nos encontremos em breve. À família, que encontrem forças para superar esse momento. E para encerrar esse desabafo, parafraseio um fragmento de seu último romance, Eu vos abraço, milhões (2010):

De uma coisa posso me orgulhar, caro neto: poucos chegam, como eu, a uma idade tão avançada, àquela idade que as pessoas costumam chamar de provecta. Mais: poucos mantêm tamanha lucidez. Não estou falando só em raciocinar, em pensar; estou falando em lembrar. Coisa importante, lembrar.

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

O OUTRO PÉ DA SEREIA: DO SEBASTIANISMO À DESILUSÃO PÓS-COLONIAL


A literatura africana pode ser considerada recente se pensarmos em produção de obras literárias por africanos e não por colonizadores. O primeiro livro publicado na África lusófona foi Espontaneidade da minha alma (1949), do escritor angolano José da Silva Maia Ferreira. Há de se levar em consideração o conceito de africanidade, que é a designação adotada pelos escritores africanos para referirem-se à África como sua mensagem ao mundo.

A literatura africana de expressão portuguesa inicia-se, basicamente, a partir do confronto, da tomada de uma consciência ideológica própria, de uma espécie de práxis revolucionária (não marxista) que através da conscientização do indivíduo africano torna-se independente. É uma literatura que pretende adquirir sua própria identidade e vai contra os moldes estéticos europeus.

Na literatura africana contemporânea há uma dicotomia muito clara, pois ao mesmo tempo em que há essa independência dos colonizadores portugueses, também há a permanência de certos elementos que caracterizaram a literatura predominante em África, como o historicismo, por exemplo, muito comum nas obras de autores como Luandino Vieira, Agostinho Neto e Mia Couto.

Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Formado em biologia, desenvolveu durante muito tempo atividades de jornalista e hoje divide seu tempo entre a literatura e estudos de impacto ambiental. Estreou na literatura em 1983 com um volume de poesia, Raiz de Orvalho. Ainda nos anos 80 publicou alguns livros de contos, como Vozes anoitecidas (1986), Cada homem é uma raça (1990), e mais recentemente O fio das missangas (2004). Porém foi no romance que Mia Couto se destacou mundialmente. Seu primeiro romance, Terra Sonâmbula, foi publicado em 1992. Depois vieram A varanda de Frangipani (1996), O último voo do flamingo (2000), O outro pé da sereia (2006), Venenos de Deus,Remédios do Diabo (2008) e Jerusalém (2009). (No Brasil o livro tem o título de Antes de nascer o mundo).

Mia Couto explora muito bem em seus romances a questão do fantástico, que em suas obras aparecem mais como elementos místicos africanos. O romance O outro pé da sereia é um bom exemplo disso. O livro narra duas histórias paralelas, uma em 2002, na Moçambique atual, e a outra no final de 1560 e início de 1561, entre Goa, na Índia, e Moçambique.

Em ambas as narrativas há uma gama imensa de personagens, reais e fictícios, que de uma maneira ou de outra acabam se cruzando, mesmo estando distantes 500 anos. Da narrativa atual, as personagens principais são Zero Madzero e sua esposa, Mwadia Malunga, um casal de pastores que vivem num auto exílio na longínqua região de Antigamente. O exílio é explicado no final do livro. Certa manhã, à beira do rio Mussenguezi, o casal encontra uma imagem de Nossa Senhora, e o achado vai mudar a vida dos dois, e é aqui que a história de Zero e Mwadia encontram ecos na outra narrativa, em 1560.


No início do ano de 1560, uma expedição portuguesa liderada pelo jusuíta D. Gonçalo da Silveira, parte de Goa com a inteção de chegar em Monomotapa, na África, e assim converter o reino à fé cristã. Nessa nau em que o jusuíta viaja, ele leva consigo uma belíssima imagem de Nossa Senhora, que depois fica-lhe faltando um dos pés. A viagem é repleta de percalços como tempestades, ameaças de motins, muitas mortes, pecados e conspirações.

A trama do romance é muito movimentada e isso torna a leitura muito ágil. É interessante perceber que fatos ocorridos no século XVI exercerão influência direta na atualidade. Todo o romance apresenta alguns elementos do sebastianismo, como a ideia da volta de um mártir (ou messias). O mártir nesse caso não seria apenas um, mas sim todo um povoado, toda Vila Longe, a terra natal de Mwadia e de seus familiares. As pessoas aqui não esperam mais nada, não esperam que mais nada aconteça, estão presas na decrepitude do tempo. É com um tom lírico que Mia Couto descreve todo esse processo de aniquilamento matafísico do povoado de Vila Longe, à maneira de García Marquez em Cem anos de solidão .

Vila Longe serve aqui como um microcosmo de toda África, com todos seus encantos e com todas suas misérias. Aos poucos cada personagem vai sumindo, vai se desvanecendo. Mia Couto tece, através da metáfora, através de símbolos, um perfil da África e de seus habitantes como um todo, com todo seu misticismo, inocência, mazelas e belezas.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

OS TRÊS ÚLTIMOS DIAS DE FERNANDO PESSOA: UM DELÍRIO?


Muitos escritores já utilizaram a biografia de Fernando Pessoa e de seus heterônimos na ficção. Nomes como Amadeu Lopes, José Saramago, Antonio Tabucchi produziram ficção baseada na vida de Fernando Pessoa, mas o que mais chamou a atenção desses autores foi a vida de alguns heterônimos, como Álvaro de Campos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Bernardo Soares, que são, de fato, os mais conhecidos.

José Saramago publicou em 1984 o romance O Ano da morte de Ricardo Reis , livro que narra o retorno de Ricardo Reis a Lisboa, depois do exílio no Brasil. O heterônimo, melancólico e soturno, contracena com o ortônimo (por mais que Pessoa também se considerasse um heterônimo) e envolve-se numa relação amorosa com Lídia. O romance gira em torno dessa relação e das vidas, naturalmente, de Pessoa e de Ricardo Reis, e do encontro entre heterônimo e ortônimo.

Antonio Tabucchi (1943- )é um professor italiano de Literatura Portuguesa na Universidade de Siena, é especialista na obra de Fernando Pessoa e também produziu ficção sobre Pessoa e sobre os heterônimos.

O livro Os três últimos dias de Fernando Pessoa - Um delírio (1994) é uma breve narrativa ficcionalizada sobre os dias finais de Fernando Pessoa no Hospital de São Luís dos Franceses, em Lisboa. O enredo, muito simples e convencional, gira em torno da ida de Fernando Pessoa para o hospital por consequência de uma crise hepática, e das visitas que recebe de seus heterônimos mais conhecidos: Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis, Bernardo Soares e António Mora.

Pessoa é retratado nesse livro como um ser decadente, totalmente entregue à uma espécie de delírio onírico no qual recebe todos esses fantasmas que não o atormentam, pelo contrário, vêm se despedir do ortônimo e deixar as "contas saldadas". E é nesse aspecto que Tabucchi peca, pois as biografias dos heterônimos são imensos paineis críticos da própria poesia de Pessoa, e o que Tabucchi faz nesse romance está muito aquém da obra pessoana (e incluem-se na obra pessoana todos os heterônimos).

Os diálogos entre Pessoa e os heterônimos são muito curtos, nada profundos, carentes de ideias mais filosóficas, o que acaba tornando o romance muito simples para quem é especialista em Fernando Pessoa. A narrativa dá a impressão que foi toda escrita através de colagens das biografias dos heterônimos, pois além dos diálogos soarem muito teatrais, falsos, mostram apenas o básico sobre cada heterônimo. E ainda há a questão do paratexto, que anuncia um delírio. De delírio o livro não tem nada, não há nada de onírico, não há loucura no personagem Fernando Pessoa, que pelo estado em que se encontrava, seria o mínimo.

Antonio Tabucchi demonstra nesse livro ser um ficcionista muito amador, ainda carente da técnica narrativa. Tabucchi quis demonstrar conhecimento sobre a obra pessoana, porém conhecer muito a obra pessoana como estudioso, não o torna apto a transportar esse conhecimento para a ficção. Seu texto pseudo-experimental é uma amostra de que escrever ficção apenas com repertório de teórico é prejudicial à ficção.

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

ESTEIROS E SUA RELEVÂNCIA PARA O MOVIMENTO NEORREALISTA


O neorrealismo português foi uma vertente que teve grande destaque na literatura portuguesa a partir do início dos anos 40 até meados dos anos 50. A corrente neorrealista foi um celeiro de escritores, principalmente romancistas, pois as temáticas sociais que interessavam aos autores na época, os quais necessitavam de um espaço ficcional mais abrangente, e isso era melhor realizado no romance.

Escritores de alto calibre aderiram ao movimento, como Augusto Abelaira, José Cardoso Pires,Vergílio Ferreira,Fernando Namora, Carlos de Oliveira, e vários outros grandes prosadores que depois do neorrealismo saturar-se, buscaram outros caminhos literários. Muitos críticos em Portugal acusavam os neorrealistas de serem panfletários, de usarem a literatura como fonte subserviente do PCP (Partido Comunista Português); mesmo havendo alguns autores que realmente fizeram literatura panfletária, isso não tira o valor e o mérito artístico literário do neorrealismo.

Para traçar um painel histórico do neorrealismo desde a configuração de sua gênese até seu esgotamento final, há de voltar-se a três obras básicas: A Selva (1939) de Ferreira de Castro; Gaibéus (1940) de Alves Redol e Esteiros (1941)de Soeiro Pereira Gomes.De certa maneira esses três autores estão ligados, tanto por serem conterrâneos, contemporâneos e terem influências em comum.

O neorrealismo teve basicamente duas influências principais: a chamada Geração Perdida dos anos 30, que foi uma corrente norte-americana criada por Gertrud Stein (1874 - 1946) e que teve adeptos como Ernest Hemingway, Willian Faulkner, John dos Passos, John Steinbeck, etc. Foi um movimento que revelou grandes prosadores preocupados com temáticas socias, com a exploração de donos de terras e banqueiros por terras devastadas e com impostos atrasados, como fica muito evidente em As Vinhas da Ira (1938) de Steinbeck.

A outra influência foi a literatura regionalista brasileira de 1930, com nomes como Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Cyro dos Anjos, etc. Todos esses escritores brasileiros estavam preocupados com uma grande mudança social, e foi através da prosa, principalmente do romance, que influenciaram todo o Brasil e mais tarde Portugal. A linguagem utilizada por esses prosadores era muito direta, linear, até certo ponto jornalística, pois era um reflexo de seu ideário marxista. A "revolução" estava na iminência de acontecer, por isso não havia entre os escritores da Geração de 30 espaço para individualismos, fluxo de consciência e linguagem rebuscada.

Quando os portugueses tiveram contato com essas duas correntes distintas (porém muito próximas)seus primeiros cultores passaram a produzir literatura engajada, primeiramente num ambiente rural, mais carente e subjugado pelo progresso do meio urbano. O espaço escolhido pelos neorrealistas foi o Alentejo (região ao sul de Portugal) e isso evidencia-se em muitos romances, como O Trigo e o Joio (1954) de Fernando Namora, Cerromaior (1943) de Manuel da Fonseca e Esteiros (1941) de Soeiro Pereira Gomes, só para citar alguns.

Com Esteiros, Soeiro Pereira Gomes alcançou certa popularidade entre os neorrealistas, mas seu romance não é considerado uma obra-prima. Esteiros é uma obra importante do neorrealismo por seguir os moldes de Gaibéus, por denunciar um regime opressor e de exploração infantil no interior de Portugal.

O enredo de Esteiros, assim como Gaibéus, não gira em torno de um personagem principal, mas retrata toda uma coletividade sedenta por justiça, mas que não sabe como chegar a ela. O romance conta a história de um grupo de meninos entre 8 e 10 anos que vive miseravelmente cometendo pequenos furtos ou trabalhando em regime de semi escravidão em telhais, que são as olarias em Portugal.

Apesar de não apresentar um protagonista único, o romance dá ênfase a três dos meninos, que representam todo o coletivo. O primeiro deles é Gineto, rebelde por natureza; o segundo é Gaitinhas, um dos únicos que chegou a ir para a escola e teve mais estudo do que os outros; e o terceiro é o Sagui, morador de rua e completamente desapegado a bens materiais. Cada um dos jovens representa uma espécie de classe diferente da outra, mas que na coletividade se completam.

Esteiros talvez peque no preciosismo do enredo, pois apresenta capatazes crueis e maus, porém a imagem que Má-Cara (capataz do telheiro) tem é muito estereotipada, beira o grotesco. Nesse aspecto falta um pouco de verossimilhança.Na obra como um todo, Esteiros segue basicamente o padrão neorrealista, ou seja, enredo linear, ambientado em um espaço rural opressor, uma gama considerável de personagens que são explorados por patrões e pelo sistema capitalista. Pode parecer que o romance não apresente nenhum elemento novo, mas na época de seu lançamento, 1941, com certeza tornou-se uma obra relevante se levarmos em consideração o contexto histórico social no qual a obra está inserida.

Levando em conta ou não certas impurezas que podem ser identificadas no romance, de qualquer maneira a obra deve ser lida e estudada, se não por inovações linguísticas e estilísticas, por sua relevância histórica e social.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

INÊS PEDROSA: DEVANEIOS E PROSA POÉTICA


A poesia portuguesa durante muito tempo foi conhecida por sua forte carga lírica, fato que também se refletia na prosa. Pode-se ver o exemplo do Romantismo Português com Almeida Garret (Viagens à minha terra), Alexandre Herculano (Eurico, o presbítero),Fialho D'Almeida (O País das uvas), Camilo Castelo Branco (Amor de Perdição) só para ficar com alguns.

De certa forma estes autores, cada um à sua maneira, naturalmente, mesmo produzindo mais prosa do que poesia, apresentavam elementos poéticos em suas narrativas, e talvez data deste período a gênese de uma prosa poética portuguesa. Viagens à minha terra de Garret é um texto belíssimo, construído sob o rigor de um romantismo embrionário que ainda buscava certa forma concreta. Segue um fragmento do romance:

As estrelas luziam no céu azul e diáfano, a brisa temperada da primavera suspirava brandamente; na larga solidão e no vasto silêncio do vale distintamente se ouvia o doce murmúrio da voz de Joaninha, claramente se via o vulto da sua figura e da do companheiro que ela levava pela mão e que maquinalmente a seguia como sem vontade própria, obedecendo ao poder de um magnetismo superior e irresistível (p.123)

Esta passagem mostra um Garret muito preocupado em manter certas regras da corrente romântica, como longas descrições espaciais e imagens idealizadas de donzelas e tudo construído sob um rigor narrativo impressionante. Naturalmente que essas características iniciais do Romantismo foram ganhando formas mais consistentes e seus autores ampliando seu universo ficcional, até chegar à moderna literatura portuguesa, com seus casos isolados, sem estéticas determinantes ou regras estilísticas.

A temática amorosa continuou ao longo dos séculos interessando muitos autores, porém aquela imagem do parceiro ideal, sem falhas, de amor puro, cristalino e etéreo, deu lugar à turbulência existencial, ontológica, ao abandono irredutível do indivíduo e assim a prosa poética chega a assumir lugar de destaque entre os portugueses.

Exemplo recente de prosa poética de qualidade é o romance Fazes-me Falta(2002), de Inês Pedrosa, escritora portuguesa que ganhou certa notoriedade a partir dos anos 90 com obras como A Instrução dos amantes (1992) e Nas Tuas mãos (1997). Inês Pedrosa nasceu em Coimbra em 1962.Formou-se em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa e desde muito cedo passou a exercer a carreira jornalística em vários jornais e revistas de Portugal. A carreira literária era questão de tempo para a escritora, pois desde muito cedo foi leitora voraz.

O romance que a tornou reconhecida em outros países da Europa foi Fazes-me Falta, publicado no Brasil pela editora Planeta. A narrativa apresenta um formato um tanto diferente e curioso. A trama gira em torno das lembranças de um aparente casal de amantes, porém o que vai se notando é que a relação dos dois se aproxima mais da amizade, pois em momento algum há descrições de cenas de sexo ou algo que se aproxime disso. Em alguns momentos há leves sugestões, mas nada que remeta de fato a um relacionamento amoroso.

A estrutura dos capítulos é muito simples. Cada capítulo é narrado por um dos personagens, o que torna a leitura muito ágil e movimentada. A mulher, que não é nomeada, morre repentinamente e deixa o homem, também não nomeado, reduzido à uma solidão irredutível. Ele era muito mais velho e no passado foi seu aluno no curso de História. Percebe-se desde cedo um relacionamento tumultuado, repleto de altos e baixos, muitas vezes inconsequente.

Ambos sempre foram o oposto um do outro. Ele era um conservador, ela uma libertária que acabou entrando para a política em um partido de esquerda, e foi neste ponto em que a relação dos dois começou a mudar. A ação toda transcorre através das lembranças de cada um, porém ela tem uma vantagem, ela narra fora do tempo, pois está morta, pode ver mais e sabe mais que ele. Ele rememora várias situações que passaram juntos, dos planos que não se concretizaram e tudo isso envolto numa atmosfera de perda, desespero e fracasso.

O que mais chama a atenção nesse romance não é o enredo em si, mas sua poesia presente em toda narrativa, sua musicalidade suave, repleta de símbolos e metáforas que fazem a narrativa tornar-se densa, tanto de ideias quanto de forma. Segue um fragmento do romance:

Sou a tua vítima, agora culpado de tudo que não fiz. Se ao menos me aparecesses, uma única vez. Faz-te fantasma, entra-me pela varanda, mostra-me o teu rosto desmoronado. Durante muitos anos pensei em sair do país para ser estrangeiro, melhor. Mas agora que o meu país és tu, já não tenho saída. Há cem milhões de estre...las, só na nossa galáxia. E em todas elas o teu olhar existe, cintilação fria da mentira de mim. Quem sou eu, neste inferno deslumbrante preenchido pelo negro da tua ausência? (p.106 e p.107)

Essa passagem é de um capítulo narrado pelo personagem masculino, segue agora um fragmento narrado pela personagem feminina:

Mas não tenho dúvidas de que nos apaixonamos naquele momento, no cinema. E voltamos a ficar apaixonados nessa noite em que fiquei morta, à luz das velas, pronta para o banquete da terra, à mercê da compaixão e dos discursos sobre os Grandes Valores da Vida (p.131)

Essas passagens mostram claramente alguns pontos já abordados, como a prosa poética como fator principal da narrativa; forte carga emocional das personagens, sendo a perda um do outro o fim. Para ele não há mais como viver do modo que vivia antes da morte da parceira, e enclausura-se em seu apartamento, não recebe ninguém, pois criou uma barreira imaginária contra o mundo exterior e está sozinho com seus fantasmas e temores. Sua única forma de ação é através da memória.Ele assume uma total carga niilista, e através da memória pretende anular-se totalmente.

Desta forma o romance se encerra, com uma forte carga de sofreguidão e com mais uma metáfora, com mais uma sugestão da autora. O narrador, que é quem dá a palavra final, quem encerra os relatos, vai tentar salvar uma menina de um atropelamento, e aqui ele tem seu momento de epifania: vê no rosto da menina o rosto de sua amiga e companheira, e é atingido pelo carro. Segue abaixo o último parágrafo:

Mas sou eu quem de repente corre em sonho de voo. Empurro-te para o passeio, o teu corpo ágil salta para a vida no último instante, ouço ainda os travões desesperados do autocarro. Entras por dentro da minha carne, bates portas e janelas, rebentas-me com os vidros. E vejo-te lá em baixo, correndo agora através do jardim, a fita vermelha do teu cabelo iluminando o relvado, há sempre um cheiro que só se descobre depois da relva molhada. Mas já não me lembro como era, fica longe, longe, cada vez mais longe (p.236)

Com este final, Inês Pedrosa mostra claramente o que a perda significou para o narrador. Não havia possibilidade de continuar desta forma, e num ato que pode ter parecido involuntário, ele se rende à dor de uma vez por todas e sucumbe, só encontrando solução na morte, no sacrifício.