segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Herdeiro do Talmude


Nessa semana que passou, peguei na biblioteca central da pucpr um livro do Isaac Bashevis Singer, Breve Sexta-Feira. Esse livro reune contos escritos em diferentes épocas da atividade intelectual de Singer, mas todos conduzem o leitor àquela atmosfera surrealista judaica da Polônia do início do século XX.

Singer é o que se convencionou chamar de herdeiro literário do Velho Testamento, pois seus contos apresentam um grau de concisão próximo aos textos da Torá, e mais, em muitas vezes com uma estrutura semelhante à fábula ou à parábola bíblica. Mas há de se levar em consideração também a relação de Singer com o judaísmo, que em alguns momentos de sua carreira literária seguiu um caminho mais culturtal do que religioso. Nessa questão o título do livro é muito significativo, Breve Sexta-Feira, que faz alusão ao Shabat.

No primeiro conto, "Taibele e seu Demônio", Singer conta a história de uma viúva que é fascinada pelas lendas e mitos hebraicos, e que acaba por se render aos desejos mundanos proporcionados por um mendigo que se passa pelo demônio Hurmizah, que aparecia em um livro que Taibele estava lendo. Como o mendigo só aparecia à noite, Taibele não podia ver seu rosto e também tinha medo de suas ameaças de ir para o inferno se contrariasse as vontades de Hurmizah. Esse é um conflito tipicamente judaico, que envolve um embate existencial muito relacionado à identidade e à cultura religiosa.

Há outros contos que merecem destaque, como "O Jejum", "Debaixo da faca" e "Sangue". Este último conta a dramática história de Reb Falik e Risha, que se casam, mas Falik é trinta anos mais velho que a esposa, fato esse que a leva buscar prazer carnal com outros homens. Risha acaba por relacionar-se com Reuben, um açougueiro que abatia animais de toda a aldeia.

Nesse conto a imagem da carne aparece como pecado, como desejo, pois depois de relacionar-se com Reuben, Risha fica obcecada por abater animais, por sangue; e como Reb Falik, seu marido, já estava inválido há muito tempo, passou a viver sua relação com Reuben abertamenmte. Essa relação era até certo ponto fetichista, masoquista, e durante suas relações, os dois amantes banhavam-se em sangue dos animais que abatiam. É uma metáfora sobre a dicotomia que existe na relação entre corpo e espírito, ou seja, ceticismo e religião. Embate esse, novamente, tipicamente judaico.

Como não poderia ser diferente, os personagens desse conto, e outros de Singer, são tomados por um sofrimento que não apresenta sua gênese claramente, e quando um membro da comunidade age de forma que destoa dos valores e conceitos estabelecidos principalmente pela religião, só há um caminho: a excomunhão, que é um preceito do Talmude. É o que acontece com Risha.

Nos contos de Isaac Singer vemos muitas situações semelhantes, mas de forma alguma o autor se repete. Seus enredos podem ser circulares, mas diferem na forma de contar, na linguagem. Singer estava tão ligado ao judaísmo (culturalmente)que, mesmo morando em Nova Iorque há muitos anos, ainda escrevia seus textos de ficção em íidiche. Fato que contribuiu muito para sua visão literária e para a formação de sua escrita sintética próxima às parábolas do Antigo Testamento. Um verdadeiro herdeiro de uma cultura milenar que tem como máxima a palavra escrita. Afinal, o legado principal dos hebreus à humanidade foi um livro. Nada mais significativo.