sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

ONDE COMEÇA A LITERATURA


Os portugueses sempre tiveram uma relação de veneração com o mar. Desde tempos imemoráveis até ao grande boon no início do sec. XVI, com as navegações. Relação essa que, vista sob o olhar histórico e crítico, apresenta uma tênue relação com a literatura, claro que aqui em um sentido metafórico. Lembremos de Camões, navegar é preciso.

Na literatura portuguesa moderna ainda há ransos camonianos que merecem ser estudados e pensados com rigor, não rigor acadêmico, mas rigor de leitor aficcionado. Um exemplo categórico desses ecos camonianos é a coletânea de contos intitulada Onde a Terra Acaba, lançado em 2006 pelo Centro de Estudos Anglísticos da Universidade de Lisboa, que reune contos de autores consagrados em Portugal e também de autores inéditos.

Se destacam nessa coletânea outores como Rute Beirante, Diana Almeida, Teolinda Gersão, João de Mancelos, João Aguiar e Rui Zink, este último merecendo grande destaque. O seu romance Dádiva Divina foi distinguido pelo Pen Clube Português com o premio de ficção em 2004. Na coletânea, o seu conto "Amanhã chegam as águas", é o que mais chama a atenção. Esse conto mostra, através de Artur, um jovem ilhéu português, uma imagem futurista de Portugal, duzentos anos adiante, que por consequência do avanço das águas do mar está cada vez mais submerso.

O governo, através de métodos autoritários e nada ortodoxos, por falta de condições de sustentar mais um povoado, escolhe determinada vila ou cidade para ser tragada pelas ondas. Esse processo é feito quando parte da barreira que impede a água de seguir adiante é destruída por tratores e gruas, e assim a vila é engolida pelo mar. Porém, o governo oferece uma alternativa aos moradores escolhidos para morrerem junto com sua cidade, trata-se de uma operação feita por cirurgiões para adaptar nos seres humanos nada mais do que guelras de peixes. Desta maneira as pessoas se adaptarão à vida submersa.

As listas saíam, e nós ficávamos de respiração suspensa até ao dia
em que, com indisfarçado alívio, víamos que tinham sido outros
– outra vila, outra cidade – os “eleitos” para serem abandonados à
fúria, insaciável, do mar.

É uma imagem apocalíptica, que remete às obras da literatura distópica inglesa do século XX, como Admirável Mundo Novo, Laranja Mecânica e 1984. Ao mesmo tempo em que o governo(autoritário, com carência moral) decide o destino dos habitantes por eles prórios, como se os escolhidos a permanecer em terra firme se livrassem de indesejados, oferece uma alternativa tão cruel quanto ao próprio abandono inicial.

Rui Zink está entre os grandes escritores portugueses da atualidade, e a imagem do mar nesse seu conto vem de encontro às imagens camonianas. É claro, às avessas. Como seu personagem, Artur, que, à sua revelia, aceita a situação atual, que é uma situação limite, e parte para o encontro com o mar. No final do conto Rui Zink não deixa claro, mas sutilmente deixa transparecer que a aquisição das guelras eram falsas. O indivíduo era anestesiado sob o pretexto de iniciar a adaptação à condição de mutante, e assim deixado à deriva, à espera do encontro, não desejado, com as ondas do mar.

Da mesma maneira que a terra e a montanha têm um significado simbólico, metafísico para Miguel Torga, o mar tem esse mesmo significado para Rui Zink. É como se a água do mar lavasse os pecados da humanidade, no conto representada por Artur, e fizesse o homem retornar a um mundo de origem. Aqui não da terra para a terra, mas do mar para o mar. Pois, navegar é preciso.