quarta-feira, 8 de setembro de 2010

ESTEIROS E SUA RELEVÂNCIA PARA O MOVIMENTO NEORREALISTA


O neorrealismo português foi uma vertente que teve grande destaque na literatura portuguesa a partir do início dos anos 40 até meados dos anos 50. A corrente neorrealista foi um celeiro de escritores, principalmente romancistas, pois as temáticas sociais que interessavam aos autores na época, os quais necessitavam de um espaço ficcional mais abrangente, e isso era melhor realizado no romance.

Escritores de alto calibre aderiram ao movimento, como Augusto Abelaira, José Cardoso Pires,Vergílio Ferreira,Fernando Namora, Carlos de Oliveira, e vários outros grandes prosadores que depois do neorrealismo saturar-se, buscaram outros caminhos literários. Muitos críticos em Portugal acusavam os neorrealistas de serem panfletários, de usarem a literatura como fonte subserviente do PCP (Partido Comunista Português); mesmo havendo alguns autores que realmente fizeram literatura panfletária, isso não tira o valor e o mérito artístico literário do neorrealismo.

Para traçar um painel histórico do neorrealismo desde a configuração de sua gênese até seu esgotamento final, há de voltar-se a três obras básicas: A Selva (1939) de Ferreira de Castro; Gaibéus (1940) de Alves Redol e Esteiros (1941)de Soeiro Pereira Gomes.De certa maneira esses três autores estão ligados, tanto por serem conterrâneos, contemporâneos e terem influências em comum.

O neorrealismo teve basicamente duas influências principais: a chamada Geração Perdida dos anos 30, que foi uma corrente norte-americana criada por Gertrud Stein (1874 - 1946) e que teve adeptos como Ernest Hemingway, Willian Faulkner, John dos Passos, John Steinbeck, etc. Foi um movimento que revelou grandes prosadores preocupados com temáticas socias, com a exploração de donos de terras e banqueiros por terras devastadas e com impostos atrasados, como fica muito evidente em As Vinhas da Ira (1938) de Steinbeck.

A outra influência foi a literatura regionalista brasileira de 1930, com nomes como Jorge Amado, Raquel de Queiroz, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Cyro dos Anjos, etc. Todos esses escritores brasileiros estavam preocupados com uma grande mudança social, e foi através da prosa, principalmente do romance, que influenciaram todo o Brasil e mais tarde Portugal. A linguagem utilizada por esses prosadores era muito direta, linear, até certo ponto jornalística, pois era um reflexo de seu ideário marxista. A "revolução" estava na iminência de acontecer, por isso não havia entre os escritores da Geração de 30 espaço para individualismos, fluxo de consciência e linguagem rebuscada.

Quando os portugueses tiveram contato com essas duas correntes distintas (porém muito próximas)seus primeiros cultores passaram a produzir literatura engajada, primeiramente num ambiente rural, mais carente e subjugado pelo progresso do meio urbano. O espaço escolhido pelos neorrealistas foi o Alentejo (região ao sul de Portugal) e isso evidencia-se em muitos romances, como O Trigo e o Joio (1954) de Fernando Namora, Cerromaior (1943) de Manuel da Fonseca e Esteiros (1941) de Soeiro Pereira Gomes, só para citar alguns.

Com Esteiros, Soeiro Pereira Gomes alcançou certa popularidade entre os neorrealistas, mas seu romance não é considerado uma obra-prima. Esteiros é uma obra importante do neorrealismo por seguir os moldes de Gaibéus, por denunciar um regime opressor e de exploração infantil no interior de Portugal.

O enredo de Esteiros, assim como Gaibéus, não gira em torno de um personagem principal, mas retrata toda uma coletividade sedenta por justiça, mas que não sabe como chegar a ela. O romance conta a história de um grupo de meninos entre 8 e 10 anos que vive miseravelmente cometendo pequenos furtos ou trabalhando em regime de semi escravidão em telhais, que são as olarias em Portugal.

Apesar de não apresentar um protagonista único, o romance dá ênfase a três dos meninos, que representam todo o coletivo. O primeiro deles é Gineto, rebelde por natureza; o segundo é Gaitinhas, um dos únicos que chegou a ir para a escola e teve mais estudo do que os outros; e o terceiro é o Sagui, morador de rua e completamente desapegado a bens materiais. Cada um dos jovens representa uma espécie de classe diferente da outra, mas que na coletividade se completam.

Esteiros talvez peque no preciosismo do enredo, pois apresenta capatazes crueis e maus, porém a imagem que Má-Cara (capataz do telheiro) tem é muito estereotipada, beira o grotesco. Nesse aspecto falta um pouco de verossimilhança.Na obra como um todo, Esteiros segue basicamente o padrão neorrealista, ou seja, enredo linear, ambientado em um espaço rural opressor, uma gama considerável de personagens que são explorados por patrões e pelo sistema capitalista. Pode parecer que o romance não apresente nenhum elemento novo, mas na época de seu lançamento, 1941, com certeza tornou-se uma obra relevante se levarmos em consideração o contexto histórico social no qual a obra está inserida.

Levando em conta ou não certas impurezas que podem ser identificadas no romance, de qualquer maneira a obra deve ser lida e estudada, se não por inovações linguísticas e estilísticas, por sua relevância histórica e social.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

INÊS PEDROSA: DEVANEIOS E PROSA POÉTICA


A poesia portuguesa durante muito tempo foi conhecida por sua forte carga lírica, fato que também se refletia na prosa. Pode-se ver o exemplo do Romantismo Português com Almeida Garret (Viagens à minha terra), Alexandre Herculano (Eurico, o presbítero),Fialho D'Almeida (O País das uvas), Camilo Castelo Branco (Amor de Perdição) só para ficar com alguns.

De certa forma estes autores, cada um à sua maneira, naturalmente, mesmo produzindo mais prosa do que poesia, apresentavam elementos poéticos em suas narrativas, e talvez data deste período a gênese de uma prosa poética portuguesa. Viagens à minha terra de Garret é um texto belíssimo, construído sob o rigor de um romantismo embrionário que ainda buscava certa forma concreta. Segue um fragmento do romance:

As estrelas luziam no céu azul e diáfano, a brisa temperada da primavera suspirava brandamente; na larga solidão e no vasto silêncio do vale distintamente se ouvia o doce murmúrio da voz de Joaninha, claramente se via o vulto da sua figura e da do companheiro que ela levava pela mão e que maquinalmente a seguia como sem vontade própria, obedecendo ao poder de um magnetismo superior e irresistível (p.123)

Esta passagem mostra um Garret muito preocupado em manter certas regras da corrente romântica, como longas descrições espaciais e imagens idealizadas de donzelas e tudo construído sob um rigor narrativo impressionante. Naturalmente que essas características iniciais do Romantismo foram ganhando formas mais consistentes e seus autores ampliando seu universo ficcional, até chegar à moderna literatura portuguesa, com seus casos isolados, sem estéticas determinantes ou regras estilísticas.

A temática amorosa continuou ao longo dos séculos interessando muitos autores, porém aquela imagem do parceiro ideal, sem falhas, de amor puro, cristalino e etéreo, deu lugar à turbulência existencial, ontológica, ao abandono irredutível do indivíduo e assim a prosa poética chega a assumir lugar de destaque entre os portugueses.

Exemplo recente de prosa poética de qualidade é o romance Fazes-me Falta(2002), de Inês Pedrosa, escritora portuguesa que ganhou certa notoriedade a partir dos anos 90 com obras como A Instrução dos amantes (1992) e Nas Tuas mãos (1997). Inês Pedrosa nasceu em Coimbra em 1962.Formou-se em Ciências da Comunicação pela Universidade Nova de Lisboa e desde muito cedo passou a exercer a carreira jornalística em vários jornais e revistas de Portugal. A carreira literária era questão de tempo para a escritora, pois desde muito cedo foi leitora voraz.

O romance que a tornou reconhecida em outros países da Europa foi Fazes-me Falta, publicado no Brasil pela editora Planeta. A narrativa apresenta um formato um tanto diferente e curioso. A trama gira em torno das lembranças de um aparente casal de amantes, porém o que vai se notando é que a relação dos dois se aproxima mais da amizade, pois em momento algum há descrições de cenas de sexo ou algo que se aproxime disso. Em alguns momentos há leves sugestões, mas nada que remeta de fato a um relacionamento amoroso.

A estrutura dos capítulos é muito simples. Cada capítulo é narrado por um dos personagens, o que torna a leitura muito ágil e movimentada. A mulher, que não é nomeada, morre repentinamente e deixa o homem, também não nomeado, reduzido à uma solidão irredutível. Ele era muito mais velho e no passado foi seu aluno no curso de História. Percebe-se desde cedo um relacionamento tumultuado, repleto de altos e baixos, muitas vezes inconsequente.

Ambos sempre foram o oposto um do outro. Ele era um conservador, ela uma libertária que acabou entrando para a política em um partido de esquerda, e foi neste ponto em que a relação dos dois começou a mudar. A ação toda transcorre através das lembranças de cada um, porém ela tem uma vantagem, ela narra fora do tempo, pois está morta, pode ver mais e sabe mais que ele. Ele rememora várias situações que passaram juntos, dos planos que não se concretizaram e tudo isso envolto numa atmosfera de perda, desespero e fracasso.

O que mais chama a atenção nesse romance não é o enredo em si, mas sua poesia presente em toda narrativa, sua musicalidade suave, repleta de símbolos e metáforas que fazem a narrativa tornar-se densa, tanto de ideias quanto de forma. Segue um fragmento do romance:

Sou a tua vítima, agora culpado de tudo que não fiz. Se ao menos me aparecesses, uma única vez. Faz-te fantasma, entra-me pela varanda, mostra-me o teu rosto desmoronado. Durante muitos anos pensei em sair do país para ser estrangeiro, melhor. Mas agora que o meu país és tu, já não tenho saída. Há cem milhões de estre...las, só na nossa galáxia. E em todas elas o teu olhar existe, cintilação fria da mentira de mim. Quem sou eu, neste inferno deslumbrante preenchido pelo negro da tua ausência? (p.106 e p.107)

Essa passagem é de um capítulo narrado pelo personagem masculino, segue agora um fragmento narrado pela personagem feminina:

Mas não tenho dúvidas de que nos apaixonamos naquele momento, no cinema. E voltamos a ficar apaixonados nessa noite em que fiquei morta, à luz das velas, pronta para o banquete da terra, à mercê da compaixão e dos discursos sobre os Grandes Valores da Vida (p.131)

Essas passagens mostram claramente alguns pontos já abordados, como a prosa poética como fator principal da narrativa; forte carga emocional das personagens, sendo a perda um do outro o fim. Para ele não há mais como viver do modo que vivia antes da morte da parceira, e enclausura-se em seu apartamento, não recebe ninguém, pois criou uma barreira imaginária contra o mundo exterior e está sozinho com seus fantasmas e temores. Sua única forma de ação é através da memória.Ele assume uma total carga niilista, e através da memória pretende anular-se totalmente.

Desta forma o romance se encerra, com uma forte carga de sofreguidão e com mais uma metáfora, com mais uma sugestão da autora. O narrador, que é quem dá a palavra final, quem encerra os relatos, vai tentar salvar uma menina de um atropelamento, e aqui ele tem seu momento de epifania: vê no rosto da menina o rosto de sua amiga e companheira, e é atingido pelo carro. Segue abaixo o último parágrafo:

Mas sou eu quem de repente corre em sonho de voo. Empurro-te para o passeio, o teu corpo ágil salta para a vida no último instante, ouço ainda os travões desesperados do autocarro. Entras por dentro da minha carne, bates portas e janelas, rebentas-me com os vidros. E vejo-te lá em baixo, correndo agora através do jardim, a fita vermelha do teu cabelo iluminando o relvado, há sempre um cheiro que só se descobre depois da relva molhada. Mas já não me lembro como era, fica longe, longe, cada vez mais longe (p.236)

Com este final, Inês Pedrosa mostra claramente o que a perda significou para o narrador. Não havia possibilidade de continuar desta forma, e num ato que pode ter parecido involuntário, ele se rende à dor de uma vez por todas e sucumbe, só encontrando solução na morte, no sacrifício.

domingo, 20 de junho de 2010

A MORTE DE SARAMAGO


Nota-se a passagem do tempo quando os mais velhos morrem, e desta forma sabemos que caminhamos para o mesmo fim. É mais desalentador quando um grande mestre, próximo ou não, nos deixa.Caso de José Saramago, morto na última sexta-feira em sua casa em Lanzarote.

Saramago era um sujeito controverso, polêmico, muitas vezes incoerente, mas é inegável o fato de que ele era um grande escritor. Meu primeiro contato com a obra de José Saramago foi durante a graduação, em uma aula do Prof. Jayme (2004), na qual o professor nos passou uma lista de obras, e entre elas estava Memorial do Convento (1982). Imediatamente fui à biblioteca da PUC e emprestei uma edição antiga do romance que narra a história de Blimunda e do padre que "caçava vontades", e queria chegar logo em casa para descobrir aquele autor singular, que escrevia parágrafos imensos, não usava pontos de interrogação, os diálogos se misturavam aos pensamentos dos personagens e assim por diante. Devorei o livro em duas noites frias de Curitiba e esse momento foi um divisor de águas em minha curta e inexperiente vida de leitor.

A partir da leitura de Memorial do Convento passei a buscar as outras obras de Saramago, e a que li a seguir foi História do Cerco de Lisboa (1988), um romance histórico sobre a conquista de Lisboa aos mouros com a ajuda dos cruzados.E há no livro também a história paralela do revisor Raimundo Silva, que altera certa frase nos originais de um livro de história acrescentando a palavra "não".

Esse romance serviu para me interessar ainda mais pela obra de Saramago,e o próximo que li foi, para mim, sua obra prima, Levantado do Chão (1979). Esse livro em particular chamou minha atenção para questões que já estavam me interessando há algum tempo na literatura portuguesa, que eram as lutas dos trabalhadores rurais num Alentejo corrupto,cruel,ditatorial e sem leis, à maneira do neorrealismo. Saramago faz nesse romance uma espécie de neorrealismo tardio, pois a corrente já havia se saturado.

Depois li vários grandes livros de Saramago, como A Jangada de Pedra,O Evangelho segundo Jesus Cristo,Ensaio sobre a cegueira e as suas obras mais recentes, A Caverna,As intermitências da morte,A viagem do elefante e seu último romance publicado, Caim.Saramago continuou a escrever seus textos naquele estilo que o consagrou nos anos 80, sem uma gramática convencional, muito fluxo de consciência, uso abusivo do discurso indireto livre.

Esperar um livro novo de Saramago sempre foi um prazer, mesmo pecando em obras como O Homem Duplicado, de 2002.Saramgo acertou bem a mão em alguns de seus romances mais recentes, publicados a partir de 2000. As Intermitências da morte é um grande livro, assim como A viagem do elefante. Caim foi um livro que tive um grande prazer em ler, mas está longe daquele Saramago de Levantado do Chão, Jangada de pedra e O Evangelho.

Em Caim Saramago teve a intenção de provocar religiosos, de alfinetar a igreja, de declarar ao mundo, mais uma vez, que era ateu.O velho Saramago pecou neste aspecto, pois a lapidação do texto ficou um pouco em segundo plano.Mas repito, foi um livro que gostei muito, mesmo com suas impurezas de estilo. Foi uma maneira interessante de Saramago se despedir da vida, com mais uma "perversidade" contra a igreja.Agora nos resta ler o que ainda não lemos ou reler o que já lemos, pois aquela incrível sensação de que em breve um livro novo de Saramago estaria em nossas mãos, nunca mais.

domingo, 25 de abril de 2010

NENHUM OLHAR: A PASSAGEM DO TEMPO EM UM ALENTEJO MÍTICO


O Alentejo, região ao sul de Portugal, foi cenário de inúmeras obras da literatura portuguesa, principalmente de autores vinculados ao Neo-Realismo. O Alentejo simbolizava durante o Neo-Realismo a classe trabalhadora, oprimida e ignorante que vivia longe das cidades, e tornou-se um microcosmo de todo o Portugal salazarista opressor.

As belas paisagens rurais descritas por Manuel da Fonseca nos contos de Aldeia Nova,descritas por Fernando Namora em O Trigo e o Joio criaram uma atmosfera maniqueísta que nos dramas retratados nas obras não encontravam a mesma beleza descrita acerca do espaço. Portanto, havia um interesse muito claro entre os autores neo-realistas em retratar o Alentejo como espaço ideal, belo, mas opressor e pertencente sempre ao mais forte. Temática que ficou até certo ponto batida, estereotipada e em alguns casos panfletária, mas permaneceu forte até seus derradeiros dias do movimento.

Esse espaço surreal e mítico não se restringe apenas aos neo-realistas dos anos 40 e 50, mas há autores mais recentes que passaram a publicar a parir do ano 2000 em diante que também se utilizaram do Alentejo para cenário de suas narrativas. Um desses autores é José Luís Peixoto, já premiado e traduzido para alguns países da Europa, como Espanha e França.

José Luís Peixoto nasceu em 1974, em Galveias, concelho de Ponte de Sôr. Muito cedo venceu o prêmio Jovens Criadores do Instituto Português da Juventude em 1998. É autor dos romances Morreste-me (2000), Uma casa na escuridão (2002) e da novela Antídoto (2003). Seu romance publicado no Brasil, Nenhum Olhar (2001) foi vencedor do Prêmio Saramago 2001, na categoria de melhor livro de ficção.

Nenhum Olhar é uma breve narrativa que tem como cenário o Alentejo, mas a atmosfera criada por José Luís Peixoto nesse livro é muito diferente do que faziam os neo-realistas. Nesse romance há muitos elementos do Realismo Fantástico (ou Realismo Mágico) famosa vertente literária nos anos 60 e 70 por abordar temáticas sociais por meio de metáforas e símbolos. O autor de Nenhum Olhar não desenvolve em momento algum críticas de tendências panfletárias, nem levanta bandeiras políticas, simplesmente faz literatura, ficção da mais alta qualidade.

O romance não narra uma única história individual, mas traça um painel de uma aldeia perdida no tempo e no espaço. É um ambiente rural, ermo e castigado pelo sol, e essa dureza física e geográfica se reflete nas personagens que participam da trama. O enredo tem início enfocando o drama particular de José, um pastor de ovelhas que depois de um dia estafante de trabalho entra na venda do Judas para tomar "trago de vinho tinto", e quem ele encontra servindo no balcão é o próprio demônio. O Demônio na narrativa tem uma participação enigmática, pois ao mesmo tempo em que planta sua "semente" da discórdia na mente de José, também age como humano, convive entre os homens, realiza os casamentos da vila e participa da vida social ativamente.

José é casado com uma bela e jovem mulher que é subjugada sexualmente por uma outra figura enigmática, o gigante. O tempo todo José é avisado pelo demônio que sua mulher não é quem ele pensa ser.

O demônio sorria. Sorrindo, perguntou como estás, onde está tua mulher que não a tenho visto? (...) Sabes, continuou enquanto sorria, disse-me o gigante que a conhece mais que tu, que sabe melhor e com mais certeza onde ela anda, onde ela está. Da lonjura branca da sua aura de álcool, José parou para entender (p.8 e p. 9)

Esse fragmento mostra claramente que a intenção do demônio não é alertar José por bondade sua, porque se compadece com seu sofrimento, mas simplesmente para causar a discórdia entre os homens, e um dos homens aqui é simbolizado pela figura do gigante. A metáfora que José Luís Peixoto desenvolve aqui é sobre a própria relação entre os seres humanos, repleta de traição, tentação, morte e desgraça. Com o tempo José passa a ser perseguido e torturado pelo gigante, que o jura de morte. Esse primeiro grande drama da narrativa termina tragicamente com o suicídio de José, pois avisado pelo demônio que sua mulher estava dormindo com o gigante, corre para casa para comprovar suas palavras, e chegando em casa, pela janela aberta de seu quarto, vê sua mulher sendo estuprada pelo gigante. Ambos se olham e José percebe naquele olhar da esposa que não havia como fugir, como escapar do jugo do mais forte.

E o tempo dos passos era longo de envelhecer muitas vezes, mas os passos, depois de serem dados, na lembrança, eram breves e pouco reais. Inclinou-se, e as portadas estavam abertas, e havia uma nesga por entre as cortinas. E a mulher estava debaixo do gigante. José sentiu-se morrer estando morto, e sentiu-se morrer e morrer, e a mulher estava debaixo do gigante. O menino dormia no berço. E havia uma noite muito escura, que era uma caixa ou um saco, onde José estava fechado, e onde lhe faltava o ar, onde já tinha morrido e só esperava perder o último sopro frágil de vontade (p. 94)

Toda a narrativa é fragmentada. Ora é narrada por José, ora por sua esposa, ora pela cozinheira, ora pelos irmãos siameses, Elias e Moisés, ora pelo velho Gabriel e ora por um narrador em terceira pessoa, onisciente que não participa dos fatos narrados. Os acontecimentos descritos até a morte de José serve de marcação para a primeira parte da narrativa, e depois do suicídio do pastor, abruptamente, passam-se 30 anos. É interessante ressaltar aqui a passagem do tempo, que consome ferozmente todas as pessoas, sem exceção. A voz do velho Gabriel durante toda a narrativa parece ser o prenúncio de uma tragédia, o prenúncio de uma catástrofe prestes a atingir a todos.

Há outros dramas tão importantes quanto o de José na narrativa, como o trágico fim dos irmãos Elias e Moisés, siameses. Um deles casa-se com a cozinheira, que não é nomeada aqui, e já numa idade muito avançada têm uma filha que mais tarde vem a se apaixonar pelo filho do pastor suicida, também chamado José. Mas a filha da cozinheira já era casada com Salomão, um primo de José, e aqui tem início mais um drama no qual o demônio participa ativamente, fazendo com Salomão o mesmo que fizera com o pastor José há trinta anos.

Percebe-se durante a leitura do romance uma certa aproximação de José Luís Peixoto com dois escritores em particular, um deles é José Saramago, pela estruturação linguística apurada, sem indicação de diálogos com travessões e pontuação própria; o outro é Gabriel Garcia Marquez, pela narrativa que passa através do tempo e o tempo, que aqui assume um papel fundamental, é o algoz cruel de todos que passam por ele.

Nenhum Olhar impressiona por ter sido escrito por um escritor relativamente jovem, pelo menos jovem ao ponto de ter escrito um livro tão maduro, consistente, elogiado pelo próprio José Saramago. Os personagens são tragados literalmente pela terra, e aqui volta-se à questão da escolha do Alentejo (mesmo não nomeado, percebe-se que trata-se do Alentejo) como cenário do romance, pois sendo um ambiente em grande parte rural, seus personagens vivem da terra, e também é essa mesma terra, esse chão que sustenta, que mata e causa sofrimento. É uma bela metáfora sobre vida, morte e tempo. E o romance se encerra com o fim de tudo, como acontece em Cem Anos de Solidão.

E o mundo acabou. Inexplicavelmente, ou sem uma explicação que possa ser dita e entendida. O mundo acabou, como num instante em que se fechassem os olhos e não se visse sequer o que se vê com os olhos fechados. As crianças morreram, os risos das crianças, espalhadas no sol e nos sábados e em agosto, morreram (...) O mundo acabou. E não ficou nada. Nem as certezas. Nem as sombras. Nem as cinzas. Nem os gestos. Nem as palavras. Nem o amor. Nem o lume. Nem o céu. Nem os caminhos. Nem o passado. Nem as ideias. Nem o fumo. O mundo acabou. E não ficou nada. Nenhum sorriso. Nenhum pensamento. Nenhuma esperança. Nenhum consolo. Nenhum olhar (p. 190 e p. 191).

Há uma poesia que percorre todo o livro de José Luís Peixoto, o que acaba tornando sua linguagem mais simbólica, até certo ponto etérea, cristalina. Esse fragmento é o parágrafo que encerra o romance, e assim como se iniciou, se desenvolveu sem respostas, também se concluiu sem respostas, e esse é um fator fundamental que faz de Nenhum Olhar um grande romance com grandes questionamentos, e sem nenhuma resposta.

sábado, 3 de abril de 2010

QUE CAVALOS SÃO AQUELES QUE FAZEM SOMBRA NO MAR? - O TEMPO E A DISSOLUÇÃO DO SER


Desde o surgimento de Ulisses (1922), de James Joyce, vários escritores pelo mundo deixaram de se preocupar com a história que está sendo contada e passaram a se preocupar com a forma que a narrativa se desenvolve. Alguns desses nomes são Virginia Woolf, Hemingway, Raul Brandão, Vergílio Ferreira,etc. Em muitas obras destes autores há a preocupação clara em como contar os fatos, e não simplesmente contar esses fatos de forma linear, estanque, com início, meio e fim.

Na moderna literatura portuguesa o principal nome talvez seja António Lobo Antunes, que não goza da mesma fama de seu conterrâneo José Saramago, mas não deve absolutamente nada em termos de qualidade. Lobo Antunes aprimorou muito sua escrita desde seu primeiro romance, Memória de Elefante (1979) até seu mais recente trabalho publicado, Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? (2009).

Segundo o próprio autor em entrevista a Mário Crespo, âncora da RTP, Lobo Antunes afirma não ser mais o mesmo escritor do início de sua carreira. Basta ler seus livros publicados a partir da metade dos anos 90, como O Manuel dos Inquisidores(1996), O esplendor de Portugal (1997), Exortação aos Crocodilos (1999) para notar a grande diferença entre essas obras mais recentes e as primeiras, publicadas a partir do início dos anos 80.

Que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?
segue as mesmas características das suas obras mais recentes, como a ausência de vírgulas, pontos de interrogação, como se a narrativa simulasse o próprio pensamento, o fluxo de consciência. O romance polifônico de Lobo Antunes narra a trajetória da família Marques, família abastada que conforme o tempo vai passando vai perdendo seus bens materiais e seus laços íntimos.

O romance é narrado por cada um dos irmãos, Francisco, homem amargurado que deseja tirar todos os bens que restam da família quando a matriarca morrer; Beatriz, mulher também amargurada, com um filho e dois casamentos fracassados; João, homossexual que se encontra à noite com garotos de programa; Ana, jovem que se envolveu com drogas e Rita, morta muito cedo por decorrência de um câncer. A mãe, em seu leito de morte também narra seus devaneios, delírios, lembranças e também o que acontece no presente. O pai também narra suas peripécias com o jogo, que foi um dos motivos principais da falência financeira da família, e também há o relato de Mercília, a empregada que descobre-se no final que também fazia parte da família, é uma bastarda que a vida inteira foi criada como empregada para manter as aparências.

Este longo e complexo relato de múltiplas vozes trata basicamente da dissolução financeira e moral de uma família portuguesa, mas poderia ser ambientada em qualquer lugar do mundo. É uma situação universal que por meio de lembranças e devaneios a quinta da família ou sua casa em Lisboa formam um microcosmo da sociedade moderna.

Durante todas as narrativas do romance há uma pergunta que faz uma espécie de costura entre as vozes da família, que é o proprio título, que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar? Essa pergunta é um eco de um tempo distante que aparentemente parece um delírio, um sonho, e é esse tom onírico que é mantido até o final do romance.

O significado do título, a uma primeira leitura, remete à infância de Beatriz, ao tempo perdido, mas conforme as narrativas vão se sucedendo os outros membros vão repetindo essa pergunta também com esse significado, de encontrar algo que não existe mais, pois os cavalos do título são os cavalos que a família tinha na quinta (fazenda), que agora é um lugar sem vida e decadente, com alguns empregados que ainda sobrevivem ao tempo, e o mar significa a imensidão, o ir e vir sem fim que é refletido na própria narrativa fragmentada, simbolizando a vida. Portanto, a chave para a compreensão do título em momento algum é entregue ao leitor, ele tem que buscar seu significado em cada voz, em cada capítulo, em cada lembrança desses personagens obscuros.

Como já dito anteriormente, as vozes que aparecem nas narrativas são dos membros da família e também da velha empregada, Mercília. Mas no penúltimo capítulo aparece mais um narrador, que não é nomeado, mas desde muito cedo aparece na narrativa dos outros, trata-se do irmão bastardo de Francisco, Beatriz,Ana, João e Rita, que o pai teve com uma criada da quinta, chamada Benedita. Esse último narrador aparece com a intenção de dar a palavra final, de entregar toda a hipocrisia e imoralidade da família escondida durante tantos anos, e é o que ele faz. Mesmo sem querer, sem se interessar por algum bem material, ele vem como se fosse um messias e dá o tiro de misericórdia e assim, desta maneira, direta e arrebatadora, entrega mais um segredo sujo, mais um tabu da família.

Com esse final, a família deixa de existir, tomada por sombras. E o capítulo derradeiro, o que encerra o romance, que é narrado por Beatriz, fecha de uma vez por todas um ciclo de exploração, corrupção, carência moral e diversas mazelas sociais representadas pela família Marques. É com esse tom de amargura, dissolução e solidão que Lobo Antunes compõe uma de suas obras mais relevantes de sua carreira.

domingo, 7 de março de 2010

ESTE É O MEU CORPO: INCURSÕES NA NATUREZA HUMANA


Muitas mulheres fizeram nome na literatura portuguesa. A freira Mariana Alcoforado foi a primeira grande mulher a enfrentar a patriarcal sociedade portuguesa do século XVII, quando, provavelmente entre os anos de 1667 e 1668, escreveu cartas ao seu grande amor, Noel Bouton de Chamilly, das quais resultaram, mais tarde, As Cartas Portuguesas. O que muito impressiona nas cartas, além de sua escrita apurada, é sua coragem de se expor a um homem, sendo ela pertencente ao clero.

Mais recentemente também houve grande incursão feminina na literatura portuguesa. Nomes como Fernanda Botelho, Maria Manuela Couto Viana, Agustina Bessa-Luis, Teolinda Gersão, Lídia Jorge publicaram obras a partir dos anos 50. Lídia Jorge estreou na literatura no início dos anos 80, com O Dia dos Prodígios. No início dos anos 2000 surge uma nova e surpreendente revelação, Filipa Melo.

Filipa Melo nasceu na cidade de Cuíto, Angola, em 1972, mas vive em Portugal desde os dois anos de idade. Iniciou suas atividades como jornalista em 1992, aos vinte anos de idade, portanto, a prática da escrita está presente em sua vida desde muito cedo. Em 2001 Filipa Melo estreia na ficção com Este é o Meu Corpo, uma espécie de romance policial, mas este breve relato vai muito além desse rótulo.

Longe de estereótipos e clichês do gênero, Este é o Meu Corpo surpreende por sua narrativa ágil e sintaxe apurada, quase impecável. Trata-se de um romance polifônico, ou seja, com mais de um narrador. A trama inicia-se com o descobrimento de um corpo mutilado, com os órgãos e ossos para fora. O cadáver está literalmente virado do avesso. É já neste primeiro capítulo que o talento narrativo de Filipa Melo se faz evidente por suas descrições minuciosas de anatomia e de suas reflexões acerca do corpo humano, fazendo relação com sua existência em vida.

É interessante perceber aqui as mudanças do foco narrativo, pois as vozes da narrativa oscilam entre um narrador onisciente, em terceira pessoa, e outro auto-diegético (em primeira pessoa), que é a voz do médico legista (anônimo),que trabalha para descobrir a causa da morte da pessoa desconhecida e desfigurada. Conforme os capítulos vão se sucedendo, outros personagens vão aparecendo no romance e vão dando sentido ao trabalho minucioso do legista. Os personagens que aparecem são Miguel, colega de trabalho da pessoa morta; depois António Cernelha dos Santos, o mecânico que encontrou o corpo à beira de um rio e que não vê a filha há tempos; Alda, mulher amargurada que foi abandonada pelo marido, Jacinto, que mais tarde descobre-se que é o assassino da mulher encontrada morta. Portanto, todas essas cenas separadas acabam tendo uma relação, mesmo que mínima.

A única personagem que narra o que vê é o médico legista, e esse é um artifício muito inteligente usado por Filipa Melo, pois o médico trabalha duro para descobrir os fatos da morte de Eduarda. Durante a autópsia o legista corta, rasga, perfura e durante o tempo todo ele conversa com ela, tece comentários principalmente acerca da vida, da morte e das relações entre as pessoas. Percebe-se que de uma forma ou de outra todos os personagens são solitários, e a morte da jovem moça é o mote que Filipa Melo usou para abordar questões relevantes como a velhice e o fim inevitável a que todos nós estamos sujeitos.

O médico legista acaba descobrindo, sem dificuldades, que o cadáver é de uma mulher e que pouco antes de ser brutalmente assassinada, ela dera à luz um menino, e que só então, como na tragédia grega, à maneira de Sófocles, esse brutal acontecimento terá relações diretas com a pessoa que encontrou o cadáver, o mecânico António Cernelha.

Outro ponto interessante a ser abordado na novela é a relação entre o médico legista e o cadáver que corta e examina. Muitas vezes chega perto do erotismo, da paixão. O legista se apaixona não por quem "seu" cadáver podería ter sido, mas pela pessoa que teve a vida interrompida de forma tão chocante, e ele sente-se também responsável por "violar" seu corpo. O médico mantém um monólogo irredutível como se conversasse com o cadáver de Eduarda, e suas divagações não podem ser interrompidas, pois dispensara seu ajudante e está sozinho neste ambiente sombrio, escuro e uma chuva torrencial cai lá fora. A atmosfera é até certo ponto perturbadora, mas é só um artifício para criar uma tensão extra, como nos romances policiais.

Concentro-me. Dirijo o foco de luz para o rosto.O tempo começou a sua acção. A prolongada exposição à água acelerou o processo. Este corpo há muito que se preparou para partir.
- Espera, conta-me. Quem te deformou a expressão?
Percorre-me a mesma combinação de estranheza e familiaridade que ontem me perturbou o sono. Repulsa e atracção.
Continuo debruçado e sussurro:
- As próximas horas são só nossas. Não tenhas medo. Fala comigo (p.48).


Este fragmento mostra claramente que o médico legista dialoga com Eduarda e que o sentimento que o habita chega a ser admiração, desejo e em alguns momentos, com muito bom humor, ele é ambíguo.

Termino o exame externo. Observo pela última vez o que resta do teu rosto.
Prepara-te. Vou entrar dentro de ti (p.50)


Este é o Meu Corpo termina com o retorno de Jacinto, o assassino de Eduarda, para sua casa e para sua mulher, Alda. Não há solução de mistérios, perseguições e lugares comuns neste belo e breve romance. Filipa Melo ao invés de escolher um protagonista detetive, cria um médico legista, que estabelece uma relação muito mais profunda com a assassinada, tanto física quanto existencial. As incursões do legista pelas vísceras de Eduarda mostram uma história de amor às avessas, na qual um dos personagens está morto, e as atitudes de quem permaneceu vivo não toma conhecimento disso, e ama seus restos mortais como se se conhecessem há tempos.

A escolha de um legista como protagonista pode ser uma metáfora sobre as relações entre as pessoas, pois o médico "invade" o corpo de Eduarda, mas não obtém resposta, não obtém sinais porque ela está morta. Assim são as relações humanas, mortas, sem vida, sem comunicação entre os seres. É uma ideia do Existencialismo sartreano, buscar a comunhão entre os seres. E como no Existencialismo francês, essa busca pela comunicação não acontece, e os resultados são trágicos.