segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

ESCRITORES PORTUGUESES CONTEMPORÂNEOS (I) - JOSÉ SARAMAGO: DO NEO-REALISMO TARDIO À MORTE DOS DEUSES



O mundo literário nunca esteve tão conectado como atualmente. Reflexo, naturalmente, da era da globalização em que vivemos. Nessa era globalizada, são cada vez mais raros os momentos de solidão, crucial para a prática da leitura, e essa, por sua vez, é relegada a um segundo plano. É como se vivêssemos na Londres futurista de Admirável Mundo Novo, na qual qualquer atividade individual era proibida e punida rigidamente pelo estado. Uma espécie de versão (antecipação) do que veio a ser o stalinismo no pós-guerra.

Enquanto grandes livros de grandes autores são esquecidos ou apenas lidos dentro dos meios acadêmicos, outros vendem como qualquer material artístico pop. Temos aí o exemplo de Paulo Coelho, Sidney Sheldon, Danielle Steel e outros. Normalmente o que vende muito não é muito bem visto por acadêmicos, salvo exceções. José Saramago é um desses casos, que além de vender muito bem, pois sempre que publica um novo livro, já entra diretamente para a lista de mais vendidos, é um grande escritor.

Caso raro na literatura, Saramago agrada tanto acadêmicos quanto leigos, fato que se torna um impasse muitas vezes, pois, ao passo em que o escritor torna-se cada vez mais conhecido e popular, a academia passa e rejeitá-lo. Há uma relação de amor e ódio entre Saramago e a academia, fato muito interessante, um fenômeno inusitado. Portanto, discorrerei aqui sobre dois livros seus que chamam a atenção. O primeiro é Levantado do Chão (1979), seu primeiro grande romance, e A Viagem do Elefante (2008), seu mais recente trabalho publicado.

Levantado do Chão narra a trajetória, repleta de percalços, da família Mau-Tempo, durante um século. Desde o final do século XIX até os conturbados acontecimentos pré e pós o 25 de abril. O romance apresenta um enredo linear, sem grandes complicações formais, com a exceção de que é nesse livro que Saramago, pela primeira vez, descarta o uso de pontos, travessões e outras indicações de diálogos. Saramago pratica frequentemente em Levantado do Chão o discurso indireto livre.

Saramago pratica nessa obra uma espécie de Neo-Realismo tardio, pois escreve sobre trabalhadores rurais do Alentejo que lutam contra um sistema capitalista opressor. Tardio porque o movimento neo-realista teve seu auge nas décadas de 40 e 50, e depois deu espaço a outros movimentos não necessariamente engajados como era o Neo-Realismo. Saramago recupera esse engajamento nessa obra, porém, é através da forma que Levantado do Chão se diferencia das outras, da força das imagens rurais, da violência descrita de forma tão real e poética.

Conforme os anos vão passando, os membros da família Mau-Tempo vão se mostrando incapazes de mudarem a situação de família oprimida de trabalhadores rurais. Eles são representantes de todas as famílias do Alentejo, miseráveis e oprimidos pela ditadura e pelo trabalho em condições sub-humanas. Esse livro é um grito de liberdade contra o abuso do poder. O título é muito significativo, pois representa a situação do trabalhador alentejano, que ao mesmo tempo em que encontra o seu sustento na terra, essa é seu algoz, cruel e impiedosa. O levantado tanto pode significar o homem que surge da terra, ou seja, sobrevive através dela (a terra como apoio), quanto a sociedade que o oprime, pois o homem é levantado à força e jogado à terra novamente quando chega sua hora. É um título muito bem construido, como o é todo o romance. Suas imagens das montanhas, dos temporais que devastam as plantações, das vilas e dos curiosos tipos que surgem no decorrer de um século fazem de Levantado do Chão um grande romance sobre o Alentejo, no qual não há personagens principais, é um drama coletivo, ao tipo de Alves Redol. É um hino à vida.

O último romance de Saramago, A Viagem do Elefante (2008) narra o périplo de Salomão, um elefante que é oferecido como presente de Dom João III a Maximiliano II, Arquiduque da Áustria. E para executar tal tarefa, é montada uma caravana com mais de 30 soldados do reino de D. João, um cornaca, um secretário de Estado e claro, Salomão.

Nesse livro Saramago mostra bem os bastidores do poder dos reinos do século XVI, seus caprichos e o descaso com o povo, fazendo prevalecer sua vontade custe o que custar. Ao passo em que a caravana portuguesa se dirige para Valladolid na Espanha, pois Maximiliano estava lá de férias, vários personagens vão aparecendo e sumindo, sem retornar à narrativa, como em uma peça de teatro. Sendo assim, o principal personagem é o próprio elefante, Salomão, que depois que é dado oficialmente ao Arquiduque, passa a se chamar Solimão.

No decorrer da narrativa, Saramago em vários momentos ironiza o papel da igreja católica e da beatice, tão peculiar, de Portugal. Através de um narrador onisciente que não participou dos acontecimentos narrados, Saramago aponta algumas das mazelas da condição humana, como a vaidade, sede pelo poder, autoritarismo, enfim, várias características da realeza. Um fato muito interessante na construção da narrativa, é a metalinguagem, que é aqui algo claramente assumido pelo narrador, que em várias passagens admite estar escrevendo um livro, ou estar produzindo um relato e se denomina como romancista. Saramago ainda consegue, aos 86 anos de idade, inovar seu estilo.

Mesmo A Viagem do Elefante não tendo a mesma força narrativa, imagética e mimética de Levantado do Chão, é um livro forte, digno do velho Saramago de Memorial do Convento e de A Jangada de Pedra. Um dos nomes mais expressivos da literatura portuguesa contemporânea, com certeza. Um escritor que está muito acima de falsos estereótipos e de premiações que ainda é, mesmo na repetição de um estilo que o consagrou, capaz de ser inovador.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

DANIEL GALERA: MIMESE COMO LEITMOTIV DE CORDILHEIRA


Muito se tem falado ultimamente sobre a nova literatura brasileira, sobre a nova geração que vem publicando de 2000 pra cá. É fato que editoras, as grandes, têm certa relutância em lançar autores novos. Pra conseguir uma suscinta publicação de 250 exemplares já é um feito homérico quando se trata de um autor inédito. Porém, é fato também, que muitos autores novos que publicam através de grandes editoras, não são tão superiores a outros, que publicam por editoras menores e fazem edições idependentes.

Daniel Galera, autor dessa chamada nova geração de prosadores, é um escritor que se situa em um meio termo entre a boa literatura e a literatura amadora. O romance Cordilheira (2008) publicado pela Companhia das Letras, mostra um autor que escreve bem, é um bom narrador, mas deixa a desejar no que concerne à técnica. Não que Daniel não acerte em muitas passagens do romance, mas logo no início do livro, o autor tenta passar a impressão de que o leitor está prestes a inicar a leitura de uma obra-prima.

O livro narra a história de Anita, uma jovem escritora brasileira que para divulgar a edição argentina de seu romance, viaja a convite da editora para Buenos Aires. Desiludida com sua própria obra, com um relacionamento fracassado e com o suicídio de uma amiga próxima, Anita se entrega de corpo e alma aos desejos de um fã com hábitos muito estranhos, social e sexualmente. Talvez uma releitura de Delta de Vênus, de Anais Nin?A partir de encontros com os amigos bizarros de Holden, com quem Anita passa a viver em Buenos Aires, Anita vai percebendo que todos eles são escritores, e que vivem sob falsas identidades, tentando imitar, ao máximo, a vida de seus personagens. Até Holden, que tem um romance publicado há algum tempo e o guarda como um segredo de estado.

O enredo de Cordilheira não apresenta muitas novidades no decorrer de suas 175 páginas. Com a exceção de descrições belíssimas de paisagens de Buenos Aires e da Patagônia, o enredo é até certo ponto previsível. No início da narrativa há a falsa impressão de uma experimentação formal em relação ao foco narrativo, mas logo se percebe que trata-se de obra linear sem novidade alguma. Outro fato que torna a narrativa de Cordilheira falha, é a tentativa de causar impacto a qualquer custo, como nas cenas de sexo. Algumas são muito boas, muito bem descritas e até certo ponto líricas, mas isso tudo se perde quando Galera tenta criar um clima sombrio de qualquer forma, e isso acaba prejudicando a verossimilhança que, claramente, ele busca mostrar em todo romance.

Anita quando decifra o mistério que envolve Holden e seus amigos, sem explicação alguma e numa atmosfera que tenta ser nonsense, entra no jogo de Holden e embarca numa viagem interior que tem por objetivo anular toda sua vida anterior. E isso só ocorrerá realizando seu maior desejo, que é engravidar, não importa de quem, mas sim engravidar. Fato que vem a acontecer.

Todos os amigos de Holden, Pepino, Silvia, Vigo, Parsifal, Esteban, quando finalmente chegam ao final de suas obras numa mímese ipsis-literis , queimam o livro e, como no livro, fazem o mesmo na vida real. Se o personagem se joga em um rio gelado aos arredores de Buenos Aires, como o faz Esteban, o autor deve fazer o mesmo na vida, pois na concepção do grupo todo, a literatura imita a vida em todos os sentidos e aspectos. Fechando assim um ciclo irredutível, ritualístico, como os ritos de uma sociedade secreta. Aqui a sociedade secreta é a própria literatura.

São esses episódios que fazem a narrativa de Cordilheira parecer um romance juvenil em muitos aspectos. O romance também apresenta boas qualidades, como uma escrita consistente, bem enjambrada, mas peca no excesso de preciosismo e na busca pela verossimilhança numa atmosfera que tende a ser verossímil, mas o que ocorre é o oposto disso. Numa atmosfera que deveria ser mais pragmática e menos onírica, Daniel Galera constrói situações com poucos significados, nas quais tudo se resume à máxima de que "a literatura imita a vida".

Termina assim o ciclo com o suicídio de Holden, mesmo sabendo que iria ser pai, porém mesmo assim permanece fiel à ideologia pessoal e do grupo. Diego Parisi, que era o nome verdadeiro de Holden, que era protagonista de seu romance, mantén-se fiel o tempo todo aos passos do aventureiro fictício que parte numa busca niilista pelo significado de sua existência pelas cordilheiras da Patagônia. É uma tentativa de realizar uma narrativa existencial, mas acaba se perdendo pelo caminho. Esperemos um próximo romance de Galera que de fato pegue na veia. Cordilheira é apenas uma boa tentativa.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

MANUEL DA FONSECA E O NEO-REALISMO


Jayme Ferreira Bueno *



Manuel da Fonseca é um dos principais autores do Neo-Realismo português. Em Lisboa se radicara desde a época dos estudos secundários, depois dos quais frequentou, por algum tempo, a Escola de Belas - Artes, mas nunca esquecera de sua terra, o Alentejo, e de sua vila, como chamava Santiago do Cacém.

Destacou-se como poeta, contista e romancista. Publicou Rosa dos Ventos (poesia, 1940); Planície e Novo Cancioneiro, de Coimbra; Aldeia Nova (contos, 1942); Cerromaior (romance, 1943); O Fogo e as Cinzas (contos, 1951); Seara de Vento (romance, 1958); Poemas Completos (1958); Um Anjo no Trapézio (contos, 1968); Tempo de Solidão (contos, 1973); Crônicas Algarvias (crônicas, 1986). Reelaborou seus textos mais de uma vez, dando-lhes forma definitiva para a Obra Completa. (Poesia, 1941, na coleção (romance, 1943).

Excetuando-se os dois últimos livros de contos, de ambiência lisboeta, a obra de Manuel da Fonseca se trata de uma obra profundamente marcada pelo espaço físico e humano do Alentejo. Em íntima relação com sua produção literária, desenvolveu uma intensa militância social, política e cultural, tendo chegado a ser preso em 1965, por ter integrado o júri que premiou Luanda, de José Luandino Vieira.

Em 1925 publicou num semanário de província os seus primeiros versos e narrativas. Foi habitual colaborador em revistas literárias, como O Pensamento, Vértice, Sol Nascente e Seara Nova. Contestatório e observador por natureza, a sua escrita era seguida de perto pela censura.

NEO-REALISMO

Movimento literário que, assentado num compromisso político-social, uniu, na década de 40, uma geração de escritores que fizeram parte, entre outros, Alves Redol, Manuel da Fonseca, Afonso Ribeiro, Joaquim Namorado, Mário Dionísio, Vergílio Ferreira, Fernando Namora, Mário Braga, Soeiro Pereira Gomes ou Carlos de Oliveira. O Neo-Realismo encontrou como elemento de divulgação de seus ideais literários e políticos, principalmente a revista Sol Nascente e o jornal O Diabo. Opunham-se dicididamente contra os intelectuais da revista Presença, que, segundo eles, encontravam-se fechados numa espécie de egotismo e esteticismo estéreis.

Formado no pensamento marxista, defendiam as concepções do materialismo dialético e rejeitavam a concepção inócua do socialismo utópico de que fora imbuído o romance realista oitocentista. Baseavam-se no romance norte-americano de Steinbeck, Caldwell ou Hemingway, e no romance brasileiro nordestino dos anos 30. Faziam, portanto, uma literatura de denúncia social e de intenção pedagógica, marcada pelo forte anseio de atingir a transformação histórica. É considerado marco inicial do movimento o livro de Alves Redol, Gaibéus, que é de 1940. Na poesia, surgiu a coletânea Novo Cancioneiro, publicada entre 1941 e 1942.

Manuel da Fonseca contribuiu com o Neo-Realismo tanto com textos em prosa com em poesia. Os poemas de Rosa dos Ventos, de 1940, os contos de Aldeia Nova, de 1942, e o romance Cerromaior, de 1943, são significativos para a consolidação do movimento em Portugal.

Manuel da Fonseca, mais tarde, saindo do Alentejo, deixa o espaço mítico, sobre o qual versam Cerromaior, Aldeia Nova e O Fogo e as Cinzas, e parte para a cidade grande, para descobrir novos caminhos literários. É quando produz Um Anjo no Trapézio, de 1968. Neste texto, segundo a crítica, o autor renova a sua arte de contar. Abandona os ambientes das pequenas praças, das feiras, das tabernas, povoadas de gente simples, mas que viviam com a dignidade, para precupar-se com aquela gente que vive nos becos e na imundície da cidade grande.

Aqui se inclui um fragmento do conto O Largo, com o qual Manuel da Fonseca inicia o livro O Fogo e as Cinzas, de 1951. O texto está impregnado de saudosismo e de linguagem poética:

Antigamente, o Largo era o centro do mundo. Hoje é apenas um cruzamento de estradas, com casas em volta e uma rua que sobe para a Vila. O vento dá nas faias e a ramaria farfalha num suave gemido; o pó redemoinha e cai sobre o chão deserto. Ninguém. A vida mudou-se para o outro lado da Vila.


Jayme Ferreira Bueno* é professor de Literatura Portuguesa e publicou Távola Redonda: uma experiência lírica, que resultou da tese de doutorado em Letras na Universidade de São Paulo.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

ALDEIA NOVA: UMA ODISSÉIA PELO ALENTEJO


Manuel da Fonseca foi um dos principais autores do Neo-Realismo português. Sua obra é vasta, girando em torno da poesia, do romance, do conto e da crônica. Mas foi no conto que sua obra teve mais relevância em Portugal e em outros países da Europa, como Espanha e França. Títulos como Rosa dos Ventos (1940) poesia, Aldeia Nova (1942) contos, O Fogo e as Cinzas (1951) contos, Cerromaior (1943) romance, e Seara de Vento (1958) romance, estão entre suas obras mais conhecidas.

Tendo começado muito jovem na poesia, logo Manuel da Fonseca mostrou-se um grande narrador, legítimo contador de histórias que logo teve seu primeiro livro em prosa, Aldeia Nova, reconhecido como um marco do Neo-Realismo em Portugal, deixando, assim, sua produção poética em segundo plano.

O livro Aldeia Nova reúne doze contos, sendo que em muitos deles nota-se uma seqüência cronológica e reaproveitamento de personagens. A construção de cada personagem que aparece ao longo do livro é moldada meticulosamente, seguindo, em muitos casos, estereótipos das vilas alentejanas do início dos anos 40. Como por exemplo, no conto O primeiro camarada que ficou no caminho, que narra a história (como não podia ser diferente) trágica da família Parral. Esse conto é o primeiro que mostra o dia-a-dia desta família de lavradores falidos, e é nesse conto que Rui Parral aparece pela primeira vez. Rui é como se fosse o personagem principal do livro todo, pois ele aparece em vários outros contos posteriores.

A narrativa gira em torno do drama da família Parral, pois além de Rui, seus pais têm outro filho, Carlos, e ao que tudo indica sofre de lepra. A família, para proteger Rui da doença, não deixa que ele se aproxime da casa da família, deixando-o assim aos cuidados dos avós. As cenas que seguem são de extrema dramaticidade e beleza, pois Rui, ao mesmo tempo em que vê-se abandonado pela mãe sem saber qual o motivo, é privado da companhia do irmão, seu grande amigo.

Manuel da Fonseca nesse conto não faz por acaso os percalços da família Parral tão dramáticos assim, pois tem a intenção de mostrar a situação precária da rotina da família alentejana. Manuel da Fonseca insere-se na corrente neo-realista, mas sua literatura em momento algum pode ser chamada de panfletária. Antes literariamente engajada, mas jamais panfletária.

O conto que segue, O ódio das vilas, narra a história de António Vargas, um herdeiro de uma rica família de Cerromaior que larga sua noiva, uma bela moça de família tradicional da cidade para casar-se com Maria Jacinta, filha de um pobre lavrador. A intenção de Antonio Vargas é levar sua nova esposa para sua casa em Cerromaior e mostrar à cidade que seus princípios vão além das convenções sociais e de seu provincianismo. Esse conto mostra claramente a rivalidade que há entre as aldeias do sul de Portugal, principalmente quando há conflito de classes. Nesse conto, Manuel da Fonseca deixa transparecer sutilmente preceitos do marxismo, do qual era adepto, como muitos autores neo-realistas. Mesmo assim, sua narrativa não torna-se inferior.

No conto seguinte, Sete-Estrelo, novamente há a presença de Rui Parral. Ainda criança, é abandonado pelos pais, que vão embora em busca de emprego em outras aldeias do Alentejo, e não voltam mais. Rui, abandonado, fica aos cuidados dos avós maternos, e dessa maneira é criado livre pelos campos de Cerromaior. Esse conto está entre os melhores da coletânea, pois mostra o drama da família Parral mais interiormente, seus pensamentos, suas angústias, e é nesse ponto que difere muito dos outros contos, que abordam dramas mais coletivos.

Essa opção pelo drama pessoal repete-se no conto que vem logo a seguir, Névoa. Essa breve narrativa conta a história de Zé Limão, um alcoólatra que vive de esmolas e da caridade alheia. Conforme a narrativa vai se desenvolvendo, uma névoa vai tomando conta da cidade. A névoa aqui é um símbolo para a distância entre as relações humanas, uma metáfora sobre a impossibilidade de comunicação entre as pessoas. E logo que Zé Limão acorda de um porre, encontra-se sozinho, isolado envolto à névoa que apodera-se de toda a vila. Dessa maneira vai seguindo trôpego por ruelas, paredes frias de pedra e encontra apenas portas fechadas.

Mais uma vez o final do conto é trágico, como toda atmosfera narrativa, característica de Manuel da Fonseca, que mostra em suas narrativas uma benevolência ou condolência muito grande por párias que a sociedade rejeita, por seres marginais e injustamente abandonados pelo sistema, mostrando assim, uma visão rousseouniana impossibilitada, pelos percalços da vida, de ser mudada ou vista com esperança.

Observa-se a mesma temática nos contos Aldeia Nova e Nortada. No conto que dá título ao livro, Zé Cardo, o jovem protagonista de 13 anos, é um trabalhador rural que sonha em conhecer Aldeia Nova, o vilarejo mais próximo de onde mora. As condições de sobrevivência são precárias, o trabalho é braçal, inicia-se antes do sol nascer e termina após o sol se pôr. O lugar onde dorme é praticamente ao relento, enfrentando calores extremos e também as piores nevascas. E dessa maneira Zé Cardo vai vivendo sua vida, sempre sonhando em conhecer Aldeia Nova.

Cinta Mouro, uma espécie de caixeiro-viajante que sempre ia a Aldeia Nova, contava ao povoado suas histórias de viajante, o que fascinava Zé Cardo e assim nasceu o desejo de conhecer tal povoado. Mas o desejo nunca pode ser realizado, mostrando assim uma frustração que não pode ser mudada. Zé Cardo e suas frustrações nesse conto servem como um símbolo para todos os trabalhadores rurais do Alentejo, e a pequena aldeia de Zé Cardo como um microcosmo para o mundo lá fora.

O conto termina com Cinta Mouro contando uma de suas histórias para seus companheiros, e Zé Cardo, cansado por ter trabalhado o dia todo, adormece sem ouvir seu final. Aqui há uma bela imagem que serve como sinal de esperança, pois Zé Cardo adormece e sonha que entra em Aldeia Nova, como nas histórias que ouvia. Manuel da Fonseca busca com esse final uma espécie de redenção para o alentejano, mas essa redenção, ao mesmo tempo em que é descrita com um forte tom de esperança, também se torna impossível, pois só ocorre através do sonho de seu protagonista.

Em Nortada, o conto que encerra o livro, nota-se mais uma recorrência nos contos do volume, que é a importância do espaço na narrativa. O Neo-Realismo tem como característica uma técnica chamada de espaço atmosférico, que é a inserção do espaço como elemento salutar na narrativa. E isso ocorre com freqüência nos contos e também nos romances de Manuel da Fonseca.

Em meio a uma atmosfera sombria e noturna, a narrativa de Nortada se desenvolve por quase vinte páginas, e narra a desventura de Rui Parral, agora já crescido e retornando a Cerromaior depois de muito tempo. A caracterização do espaço aqui se desenvolve de maneira a interferir diretamente nos acontecimentos narrados, pois conforme Rui vai se aproximando de seu destino final, o frio, o gelo das montanhas e a escuridão irredutível vão agindo de forma a impedir a viagem de terminar de forma tranqüila. Rui viaja como passageiro em uma carroça de um aldeão, que por algum dinheiro se prontificou a levá-lo a Cerromaior.

Quando Rui chega à casa que fora de sua família quando criança, nota-se a degradação física do ambiente, que por sua vez, reflete a degradação também física e moral de Rui. Na escuridão e no frio da casa abandonada, Rui enxerga vultos e espectros que são sinais da desolação, da miséria e do tempo. Manuel da Fonseca constrói, assim, uma das mais belas imagens de todo o livro, indo diretamente ao encontro das tendências neo-realistas, mostrando, ou melhor, denunciando, a exploração da sociedade pelo meio rural. Um dos temas mais recorrentes dos escritores neo-realistas.

sexta-feira, 17 de outubro de 2008

A CONTRIBUIÇÃO FEMININA PARA A POESIA DE TÁVOLA REDONDA


Jayme Ferreira Bueno*


A Revista Távola Redonda foi publicada em Lisboa, de 1950 a 1954. Incluiu um grande número de jovens poetas. Foram aproximadamente oitenta os colaboradores ao longo dos vinte Fascículos editados. É marcante também o número de colaboradoras. Foram doze as poetisas que contribuíram com poemas e algumas delas com ensaios sobre literatura.

Selecionamos três, as que aparecem com maior freqüência nas páginas de Távola Redonda. Na apresentação, indicam-se os Fascículos em que colaboraram: 1. Fernanda Botelho (1, 2, 4, 6, 7, 8, 10, 12, 14, 19 e 20); 2. Maria Manuela Couto Viana (2, 6, 7, 12, 19 e 20); e 3. Terezinha Éboli (9, 10 e 12), poetisa brasileira.

Outra característica importante da Revista foi abrigar poetas e poetisas de inúmeros outros países da Europa e da América. Do Brasil, participaram Cecília Meireles, Manuel Bandeira e Jorge de Lima, além da poetisa Terezinha Éboli. Apareceram também poetas de várias outras línguas, como Catulo, Elliot, Ezra Pound e outros.


FERNANDA BOTELHO


A poetisa que mais colaborou em Távola Redonda, em número e qualidade, foi, sem dúvida, Fernanda Botelho. Participou do primeiro grupo, aquele que idealizou e fundou a Revista e que incluía David Mourão-Ferreira, António Manuel Couto Viana e Luiz de Macedo.

Fernanda Botelho é de família de literatos. É sobrinha-neta do romancista naturalista Abel Botelho e aparentada do prosador do Romantismo, Camilo Castelo Branco. Iniciou seus estudos de Filologia Clássica na Universidade de Coimbra e concluiu o curso na Universidade de Lisboa.

É a poetisa que no grupo de Távola Re­donda pode ser classificada de original. A originalidade da sua poesia resulta de um conjunto de fatores que incluem aspectos de construção aliados a uma temática que surpreende o leitor. O geometrismo de suas imagens, o reaproveitamento de formas tradicionais, a ironia com que versa assuntos do quotidiano, a expressão lírica do amor impossível são elementos que tomam a sua poesia revitalizada. Destas características, a mais notada e referida pela crítica foi o geometrismo. David Mourão-Ferreira afirma: Em Femanda Botelho, tudo se converte em linhas, figuras, sombras e volumes, num desejo inconseiente de geometrização... A sua poesia encerra uma grande ironia.

Fernanda Botelho, depois da fase poética de Távola Redonda, passou-se para o romance. O conjunto de sua obra registra o primeiro livro, que foi de poesia, Coordenadas Líricas (1951), e depois os romances: O Enigma das Sete Alíneas (1956), O Ângulo Raso (1957), A Gata e a Fábula (1960), Xerazade e os Outros (1964), Lourenço é nome de Jogral (1971), Esta Noite Sonhei com Brueghel (1987), As Contadoras de Histórias (1998), para citar os mais reconhecidos pela crítica.

A poetisa e escritora nascida no Porto, faleceu em 11 de dezembro de 2007. Em órgão da imprensa portuguesa foi assim noticiada a sua morte: Morreu hoje a escritora e poetisa portuguesa e portuense Fernanda Botelho e afirma: Lembrar os poetas (com os poemas que fizeram e marcaram e marcam as nossas vidas) nas datas que marcaram as vidas deles. Como diz António Manuel Couto Viana, um dos colegas da escritora na redação de Távola Redonda: - A homenagem a um Poeta que morreu / É decorar-lhe os versos.

Para homenageá-la e para ilustrar a sua poesia, aquela publicada em Távola Redonda, seguem três poemas:


AS COORDENADAS LÍRICAS


Desviou-se o paralelo um quase nada

e tudo escureceu:

era luz disfarçada em madrugada

a luz que me envolveu


A geométrica forma de meus passos

procura um mar redondo.

Levo comigo, dentro dos meus braços,

oculto, todo o mundo.


Sozinha já não vou. Apenas fujo

às negras emboscadas.

Em cada esfera desenho o meu refúgio

— as minhas coordenadas.


FEITIÇO VIRADO


Ao luar,

a sombra da tua mão

alongou-se pelo chão.


Boneca-miniatura

na palma de mão gigante,

pisei, maldosa, a escura

sombra distante.


E daí, por sugestão,

foi que em mim nasceu, cresceu

esta triste condição

de te crer maior do que eu.


QUOTIDIANO


Sou eu. Sabes quem sou?

Não, não digas nada.

Sei apenas que estou

acabrunhada.

E se inclino o rosto,

se pareço uma pirâmide truncada

com sobrecasaca de frio,

é porque não gosto

de puxar o fio

à meada.


CONCLUSÃO


Távola Redonda
teve o mérito de fazer renascer em Portugal a atmosfera poética, ausente nas produções da década anterior. Foi essencialmente lírica seguindo a tradição portuguesa.

A Távola Redonda ao assumir um aparente não-compromisso com o social levou a sua produção a se voltar para um neo-esteticismo. Assim, foi freqüente seus colaboradores se voltarem à temá­tica da própria poesia uma de suas preocupações fundamentais.


Jayme Ferreira Bueno* é professor de Literatura Portuguesa e publicou Távola Redonda: uma experiência lírica, que resultou da tese de doutorado em Letras na Universidade de São Paulo.


quinta-feira, 16 de outubro de 2008

HOMENAGEM TARDIA

Mesmo sendo avesso a datas como Dia dos Professores, Dia dos Pais, Dia da Mulher, etc., não poderia deixar de homenagear aqueles professores que me marcaram ao longo da jornada escolar ou acadêmica. Lendo o blog do Prof. Jayme, li a homenagem que ele prestou aos seus professores, e senti-me na obrigação de homenagear os meus.

Seguindo o exemplo do Prof. Jayme, citarei três professores que me marcaram profundamente. A primeira é a Professora Simone, de língua portuguesa e literatura brasileira, que foi minha professora durante todo o ensino médio no Colégio Lacerda Braga, em Curitiba. Nessa época, entre 15 e 17 anos de idade, eu ainda não sabia que caminho seguir na universidade. A opção pela vida acadêmica já existia, graças à professora Simone. Como experiência, prestei vestibular para História, pois já sabia que a área que seguiria seria dentro das Ciências Humanas. Como ainda não havia terminado o Ensino Médio, não pude iniciar o curso, fato que me deixa muito satisfeito hoje em dia (mesmo sendo apaixonado pela História).

No último ano do ensino Médio, a Prof.ª Simone promoveu um concurso de contos no colégio, e nesse concurso eu me inscrevi e fiquei em terceiro lugar. Eu já tinha algum interesse pela literatura, mas nada profundo. E foi exatamente por causa desse singelo concurso que o gosto pela literatura me levou ao curso de letras. O prêmio que ganhei por ter me classificado em terceiro lugar foi um exemplar (o qual guardo até hoje) de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Esse episódio foi fundamental para a escolha de minha carreira acadêmica e profissional.

Já na universidade, em contato com um universo diferente daquele do Ensino Médio, tive o privilégio de conhecer o Professor Marcelo Franz. Com seu jeito introvertido, sério e às vezes um tanto quanto mal-humorado, ministrava suas aulas de Literatura Brasileira, Teoria da Literatiura e Literatura Portuguesa. Eram as aulas do Prof. Marcelo que faziam com que eu passasse as tardes na sala de aula (eu estudava à tarde). É também ao professor Marcelo que devo a descoberta de grandes autores, muitos dos quais carrego comigo até hoje, como Vergílio Ferreira, Raduan Nassar, Dino Buzzati e vários outros.

Tive o privilégio de contar com o Prof. Marcelo, novamente, na pós-graduação em Literatura Brasileira. O Prof. Marcelo foi o orientador de minha pesquisa na especialização na pucpr, e sua orientação segura, crítica e sempre agradável, me levou a alcançar o bom resultado que alcancei na defesa. Mesmo depois de alguns anos longe um do outro dentro de sala de aula, pois conclui a graduação em 2006, eu e o Prof. Marcelo continuamos mantendo contato. Continuei pedindo indicações de leitura e material de apoio, sendo sempre muito bem atendido.

Fato semelhante aconteceu com o Professor Jayme Ferreira Bueno. Prof. Jayme foi meu professor de Literatura Portuguesa durante todo o terceiro ano da graduação, em 2004. As aulas do Prof. Jayme despertaram minha atenção para a Literatura Portuguesa, pois eram diferentes de todas as outras. Normalmente o Prof. Jayme entregava uma lista de obras e dividia a classe em grupos, e cada grupo ficava encarregado de analisar uma obra. O interessante era que eu me via na obrigação de ler todas as obras da lista, mesmo as obras que não seriam analisadas por meu grupo. Aquele ano foi, com certeza, o mais produtivo dos quatro que passei na graduação. De um lado havia o Prof. Jayme, sutilmente nos obrigando a caminharmos com nossos próprios passos, pois 50% do aprendizado dependia de mim, de minhas leituras, das pesquisas. De outro havia o Prof. Marcelo, que ministrava aulas detalhadas ao extremo, sempre com muito afinco e exigência, com muito embasamento teórico.

Houve, é claro, muitos outros professores que marcaram durante toda a graduação (e na pós-graduação também), mas o Prof. Jayme e o Prof. Marcelo foram os principais. Sinto pela distância, mas é algo a que temos de nos acostumar, é inevitável. Mas sempre estão na lembrança. Parabéns e muito obrigado.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

A REVISTA TÁVOLA REDONDA E A PINTURA COMO POESIA




Jayme Ferreira Bueno*


Na Arte Poética, Horácio (I séc. A. C.) afirmava: “ut pictura poesis”, algo como “como a pintura, é a poesia”, que se pode simplificar para “pintura é também poesia”. Mesmo sem um significado estrutural próprio, a expressão veio a ser interpretada como um princípio de similaridade entre a pintura e poesia. Como tanto a pintura como a poesia, ambas podem retratar a realidade e assim coincidir com o que afirmou Aristóteles em sua Poética. Como se sabe a Poética baseia-se no princípio da imitação, a mimese.

O princípio de similaridade entre poesia e pintura volta a ser reafirmado no Parnasianismo. Os poetas dessa estética procuravam unir a poesia à pintura e criavam verdadeiros painéis. No Brasil, Alberto de Oliveira, por exemplo, no Soneto “Vaso Chinês”, em que descreve com tantas minúcias que o poema se torna visual. Nestes versos, pode-se observar a aproximação entre pintura e poesia:

“Estranho mimo aquele vaso! (...) / Fino artista chinês, enamorado, / Nele pusera o coração doentio / Em rubras flores de um sutil lavrado, / Na tinta ardente, de um calor sombrio. / Mas, talvez por contraste à desventura, / Quem o sabe?... de um velho mandarim / Também lá estava a singular figura. / Que arte em pintá-la! (...)”.

No Modernismo com suas Vanguardas, as relações entre ambas as artes estreitam-se a ponto de obras ou poemas pretenderem retratar quadros ou situações próprias da pintura, como é o caso dos caligramas, de Apollinaire. O poeta francês pretendia estabelecer a fusão da expressão literária com a expressão plástica.

Essa tentativa ressurge ainda com mais força na segunda metade do século XX, com o movimento da Poesia Concreta, iniciada no Brasil em 1950. O Concretismo, que pregava a diminuição da importância do discurso em prol da figura plástica do poema.

Na crítica fenomenológica, que teve sua força por volta dos anos 60, Mikel Dufrenne, em seu livro O Poético, expõe: “pode-se dizer que uma tela ou um monumento introduzem em nós um estado poético”. Portanto, um quadro pintado ou um monumento erigido em praça pública podem nos levar a usufruir a poesia, porque ela pode estar contida na natureza, nas coisas e nas pessoas. Afirma ainda Dufrenne que, na natureza, a poesia pode estar em uma bela paisagem, num belo pôr do sol; nas coisas, pode aparecer em pinturas e estátuas; e em pessoas, pode brilhar no olhar da pessoa amada.

A revista Távola Redonda, nos anos 50, em Portugal, busca também essa aproximação entre pintura, desenho e poesia. Desse modo, ilustrava as páginas de cada fascículo com desenhos dos próprios poetas colaboradores, como António Manuel Couto Viana, António Ramos, António Vaz Pereira, João Mattoso, João Santiago, José Régio e do seu irmão, artista plástico, Julio.
Para ilustração (no início do texto), apresentamos uma figura da página 5, Fascículo 2.



Jayme Ferreira Bueno* é professor de Literatura Portuguesa e publicou Távola Redonda: uma experiência lírica, que resultou da tese de doutorado em Letras na Universidade de São Paulo.




terça-feira, 23 de setembro de 2008

OSTRACISMO LITERÁRIO II: na diocese anti-nacionalista nonsense


Muito do que se faz e do que se fala hoje no Brasil, e muito no âmbito cultural, é pura retórica nacionalista, como se tudo fosse sublime só porque “temos que exaltar o que é nosso”. A maior parte das idéias prontas que tanto atalhufam as academias brasileiras são desse tipo. De Gilberto Freyre a Antonio Quartin de Morais. Como diria Paulo Francis, “um bando de comunistas limonada”.

Depois de algumas semanas volto a falar aqui no blog sobre Diogo Mainardi. Da primeira vez analisei seus dois primeiros romances, Malthus (1989) e Arquipélago (1992). Neste texto analisarei os dois últimos, Polígono das Secas (1995) e Contra o Brasil (1998), o melhor dos quatro. Mas, voltando ao ufanismo hipócrita e idiota que definha o nível intelectual dos acadêmicos brasileiros, Diogo Mainardi, com seu terceiro romance, Polígono das Secas, desfere golpes ferozes contra o imaginário nacional tão difundido e idealizado pala literatura regionalista. Como “o povo nordestino é batalhador, sofrido e heróico”. Para Diogo, a travessia de Riobaldo pelo sertão mineiro é tratada por todos como se fosse algo próximo às cruzadas. A pobreza é venerada na literatura nacional.

O leitmotiv de Polígono das Secas, e também de Contra o Brasil, é a derrocada de quase todas as teorias e colocações lisonjeiras acerca do Brasil, e o autor quer defender a tese de que tais teorias, ditados e pensamentos não passam de lugares comuns e de clichês nacionalistas estúpidos.

Em Polígono das Secas, um serial killer atravessa o polígono das secas no nordeste brasileiro espalhando por onde passa seu veneno, com o intuito de exterminar todas as mulheres com o nome de Catarina Rosa. Ao longo de sua jornada, o untor (como é denominado por Mainardi), se depara com vários tipos conhecidos na literatura regionalista nordestina, como o retirante que busca melhores condições na cidade grande; o pai que carrega o filho morto nos braços em busca de um enterro decente; o político corrupto e autoritário que manda matar seus oponentes; o pistoleiro que mata por dinheiro. Todas essas figuras são mostradas na literatura brasileira de forma idealizada.

Mainardi em sua narrativa, além de desmistificar esses estereótipos, zomba de tais figuras, transformando o pai que carrega o filho morto pelo sertão de um pobre herói sofredor em um interesseiro que vende o corpo do filho para o assassino, pois o untor retira parte de seu unto venenoso da saliva de moribundos. (Seria isso uma ironia às nossas comodities?). Transforma o mesmo personagem, que se chama Manoel Vitorino, de um solícito cidadão brasileiro que iria enterrar Catarina Rosa, em um necrófilo sem escrúpulos que vai agindo por todo o sertão. E dessa maneira os mitos vão sendo desmascarados por Diogo Mainardi durante toda a narrativa. Também é interessante ressaltar que o narrador, em terceira pessoa, conforme os capítulos vão se sucedendo, vai manifestando sua opinião acerca da literatura nacional, como se fosse um Super Ego de Mainardi.

Os autores sertanejos tendem a atribuir um significado para cada evento da vida de seus personagens.

E é nessa mesma atmosfera nonsense de Polígono das Secas, que Mainardi cria Pimenta Bueno, protagonista de Contra o Brasil. Pimenta Bueno é um sujeito desprovido de qualquer boa intenção e com um repertório farto de impropérios contra o Brasil. Há nesse romance uma lista considerável de citações de vários autores e de personagens da história que estiveram no Brasil e desferiram violentos golpes verbais contra a pátria e o povo tupiniquim. Pimenta Bueno tem o trabalho apenas de citar esses autores (Claude Levi-Strauss, Charles Darwin, Evelyn Waugh), e de manifestar sua sórdida, para seus interlocutores, opinião.

É interessante quando Pimenta Bueno pergunta a qualquer um de seus interlocutores se conhece tal autor, a resposta é sempre a mesma: “não”. Diogo com isso zomba da ignorância dos brasileiros de um modo geral, com uma tristeza, certamente, mas com muito bom humor.

A trama de Contra o Brasil começa quando Pimenta Bueno, herdeiro de um cinema abandonado, agora lar de mendigos, ateia fogo à sua antiga propriedade e foge para o interior do Brasil. Chegando em Mato Grosso, decide realizar o mesmo trajeto feito por Strauss na década de 30, através da linha telegráfica do Marechal Rondon. O objetivo de Pimenta Bueno é chegar à tribo dos nambiquara, e é o que acontece. Mas o que ele encontra é bem diferente do que estava procurando. Ao invés de nambiquaras primitivos, como aqueles com os quais Strauss havia convivido e estudado, encontra uma tribo de índios assimilados e submissos, que se submetem a todo tipo de capricho e de canalhice impostas por Pimenta Bueno.

Nessa sua passagem pela tribo dos nambiquara, Pimenta Bueno pretende desenvolver a tese de que os brasileiros não têm identidade. Os índios nambiquara, que ele imaginava fossem os últimos índios ainda selvagens, já não o eram. Na tribo já havia várias das características comuns na sociedade civilizada, como a prostituição, corrupção, ignorância e promiscuidade. A tribo na qual Pimenta Bueno vive por algum tempo funciona como uma espécie de microcosmo do Brasil, com todas as suas deficiências e mazelas morais.

A diferença de um Pimenta Bueno para um Macunaíma, é que Pimenta Bueno, também herói sem caráter, não se esconde atrás de figuras nacionais feitas, ele mesmo procura, de forma direta, se auto destruir. Ele prova que todas suas imprecações contra o Brasil estão corretas, pois ao longo de sua jornada se depara com a ignorância, com a corrupção, com o comodismo do povo em geral, representado pelos mendigos do cinema, pelos índios e pelos parentes de sua mulher, Lavínia.

Um elemento interessante em Contra o Brasil, e que difere dos outros romances de Mainardi, é a sua forma. Todo o texto tem a forma de texto dramático. As falas dos personagens não são designadas por travessões, aspas ou pelo discurso indireto, mas pelo nome do personagem que fala. São rubricas que compõem todo o romance. O efeito que Diogo Mainardi buscou com essa forma curiosa foi a ironia. É mais um artifício que ele encontrou para zombar do leitor, como não podia ser diferente. Muito bem aproveitado por sinal, e que reforça ainda mais aquela atmosfera nonsense presente em toda narrativa e em seus outros romances.

Mais do que o narrador onisciente de Polígono das Secas, Pimenta Bueno parece ser de fato o Super Ego de Diogo Mainardi, mas só no que concerne às injúrias e difamações contra o Brasil e seus mitos ufanóides. De forma alguma em relação ao seu caráter. É uma pena que Diogo Mainardi tenha desistido da literatura. Prometeu nunca mais escrever sequer uma linha de ficção. Isso já faz dez anos. Mas esperemos que o seu Super Ego, Pimenta Bueno, o faça voltar atrás e simplesmente ignorar tudo o que disse. Afinal, Diogo também é brasileiro.

domingo, 21 de setembro de 2008

TÁVOLA REDONDA: uma homenagem a seus colaboradores


Jayme Ferreira Bueno*

Depois de mais de cinqüenta e oito anos, após o aparecimento, é viva a presença da revista Távola Redonda na memória de quem teve a felicidade de lê-la e estudá-la nos anos de 1980, quando ela ainda era novidade na crítica portuguesa e brasileira. Depois da publicação do trabalho Távola Redonda: uma experiência lírica, houve alguns encontros, mesmo no Brasil, mais especificamente em São Paulo para relembrar aqueles anos de poesia lírica em Portugal, que a revista teve o mérito de divulgar.

Na Casa de Mário de Andrade, no bairro da Barra Funda, na capital paulista, em 1989, quando a revista iria completar quarenta anos, compareceu grande parte dos poetas que fizeram a revista, com destaque para o fundador, David Mourão-Ferreira e um de seus diretores, Manuel Couto Viana. Foi uma comemoração que, no Brasil, realçou a importância daquelas Folhas de Poesia, publicadas em Lisboa no período de 1950 a 1954.

Apresentam-se a seguir exemplos da poesia que foi feita em Távola Redonda, naqueles anos de 1950, de intenso lirismo em uma literatura já lírica por excelência, como a que sempre se fez em Portugal.

1. DAVID MOURÃO-FERREIRA

O mais destacado dos poetas de Távola Redonda foi, sem dúvida, David Mourão-Ferreira, exatamente o idealizador, fundador e co-diretor da revista. Foi crítico de renome, escreveu sobre poesia, prosa e teatro, assim como produziu em todas essas áreas da literatura. Era poeta que conseguia manifestar conhecimento em seus poemas, para produzir uma poesia de intenso lirismo filtrado pela inteligência. Era, talvez, o único dessa geração que fazia uma poesia pensada, além de profundamente sentida, repleta de símbolos míticos, o que valorizava sobremodo toda a sua produção poética.

Na revista, David colaborou com textos críticos e notas explicativas. Sua intensa atividade como poeta fez que publicasse em Távola Redonda vinte e seis poemas, dos quais, em sua homenagem, aqui se reproduz este publicado no Fascículo 7, página 3:

A SECRETA VIAGEM

No barco sem ninguém, anónimo e vazio,

ficamos nós os dois, parados, de mão dada...

Como podem só dois governar um navio?

Melhor é desistir, e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,

tornamo-nos reais, e de madeira, à proa ...

Figuras de legenda... Olhos vagos, perdidos...

Por entre nossas mãos, o verde Mar se escoa...

Aparentes senhores dum barco abandonado,

nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...

Aonde iremos ter? - Com frutos e pecado

Se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.

O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.

- Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,

a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!

2. ANTÓNIO MANUEL COUTO VIANA

Foi um dos diretores de Távola Redonda. Sempre esteve ao lado de David Mourão-Ferreira na redação e no planejamento da revista. Como poeta foi muito criticado por setores da crítica portuguesa, que não perdoava o seu intenso lirismo, principalmente por aqueles da revista de cunho realista, Árvore dirigida e orientada esteticamente por António Ramos Rosa.

A poesia de António Manuel Couto Viana é lírica, musical, voltada para o “eu”. A sua temática é tradicional e talvez aí residisse o motivo das críticas. Apresenta em seus poemas o drama da consciência do envelhecer, a busca da recuperação do tempo pela poesia e a aceitação da solidão como auto-flagelo por haver falhado no amor. A poesia era também uma espécie de escapismo em que busca o último refúgio.

Em sua homenagem, aqui se reproduz um poema que foi publicado no Fascículo 15, página 4:

POESIA

Com mão alada procuro

O emocional desenho puro:

A linha é frágil; o verso é duro.

A claridade dos cimos!

Por alcançar nos desmedimos:

Turvam a fonte os humanos limos.

Fique meu gesto suspenso

Com o branco sinal dum lenço

Por sobre o mundo nocturno e imenso.

3. FERNANDA BOTELHO

Távola Redonda teve o mérito também de incluir entre seus fundadores algumas poetisas, o que não era comum naqueles anos de 1950. Assim, Fernanda Botelho participou do primeiro grupo da revista, aquele que a idealizou e a fundou. Poetisa, romancista, novelista, contista e tradutora, Fernanda Botelho vem de uma tradicional estirpe de escritores portugueses. É sobrinha-neta do grande romancista do Naturalismo português Abel Botelho e é também aparentada do grande prosador do Romantismo Camilo Castelo Branco.

Uma das novidades da poesia de Fernanda Botelho é trazer para seus poemas o emprego de imagens geometrizantes. Apresenta também formas tradicionais, como as bailias, formas da tradição medievais e medievalizantes da poesia portuguesa, uma profunda ironia em seus versos e a temática do amor impossível. Uma outra sua característica marcante é a poesia metapoética, o que a eleva à altura dos principais poetas da literatura portuguesa.

Como homenagem à poetisa, transcreve-se o poema do Fascículo 10, página 1:

AS COORDENADAS LÍRICAS

Desviou-se o paralelo um quase nada

e tudo escureceu:

era luz disfarçada em madrugada

a luz que me envolveu.

A geométrica forma de meus passos

procura um mar redondo.

Levo comigo, dentro dos meus braços,

oculto, todo o mundo.

Sozinha já não vou. Apenas fujo

às negras emboscadas.

Em cada esfera desenho o meu refúgio

- as minhas coordenadas.

4. MARIA MANUELA COUTO VIANA

Maria Manuela Couto Viana é irmã do poeta António Manuel Couto Viana. Além de poética, ela publicou o romance Raízes que não secam (1942), com o qual concorreu e obteve o prêmio do concurso “procura um Romancista”. Dedica-se mais freqüentemente à poesia infantil, como autora e tradutora. Publica também sobre folclore.

A sua poesia apresenta tendências neo-esteticistas pelo emprego de formas fixas, como a ode e o soneto. Volta-se para os símbolos das histórias infantis e das crendices populares e também a expressão de desejos íntimos colocados num plano idealizado, o que tornam a sua poesia profundamente lírica e pessoal.

Aqui a poetisa é homenageada com um poema publicado no Fascículo 6, na página 2:

REVELAÇÃO

Senta-te à cabeceira,

Dá-me teus finos dedos,

Destrua-se a fronteira

Dos íntimos segredos.

Branca face lunar

A estranha face tua.

Vejo-me em teu olhar

Desamparada e nua.

Do que me queres dizer

Adivinho o sentido:

Como é triste morrer

Antes de ter vivido!

Nem carícia nem voz,

Só pálpebra tombada.

Já, para além de nós,

Se alonga a dura estrada...

Que aroma de aloés

Neste silêncio arde!...

Agora sei quem és,

Mas agora é tão tarde...


Távola Redonda se filiou à poesia lírica portuguesa tradicional. Inscreveu-se na tendência poética que provinha de A Águia, de parte de Orpheu e principalmente da Presença, da qual recebeu forte influência tanto na poesia, como na orientação estética daquela revista, que havia predominado na década de 30. Assim, ela se opôs à poesia de vanguarda, como, por exemplo, a surrealista, e, de certo modo, contestou a poesia de orientação socializante, como a do Neo-Realismo.

Procurou sempre manter-se conservadora e apolítica, como já fora a própria Presença. Preferiu, portanto, uma atitude de não-participação ativa no momento histórico, a não ser por uma espécie de ceticismo, que foi característica de grande parte da poesia da década de cinqüenta. Esse sentimento cético em relação aos destinos políticos do mundo, e em especial de Portugal, aliado a um ideário de índole subjetiva, levou a revista rumo a uma retomada do lirismo.

A posição que Távola Redonda assume, assim, um aparente descompromisso com o social, o que leva a sua produção poética a se voltar para um neo-esteticismo, a ponto de fazer da temá­tica da própria poesia uma de suas preocupações fundamentais. Como decorrência dessa retomada do lirismo e da preocupação estética, Távola Redonda teve o mérito de fazer renascer em Portugal a atmosfera poética, ausente em grande parte da poesia da década anterior.

Os exemplos reproduzidos neste texto demonstram em parte esse lirismo que se mostrava aparente em todos os Fascículos de Távola Redonda.


Jayme Ferreira Bueno* é professor de Literatura Portuguesa e publicou Távola Redonda: uma experiência lírica, que resultou da tese de doutorado em Letras na Universidade de São Paulo.


quarta-feira, 17 de setembro de 2008

LIRISMO


"Depois dos gregos nunca um povo tão pequeno criou uma literatura tão grande" é uma afirmação de Aubrey Bell sobre a litera­tura portuguesa, que a coloca, pelo juízo de valor que encerra, em lugar de proeminência no conjunto das literaturas de expressão universal.

A relação entre uma literatura tão extensa e a dimensão quan­titativa reduzida do povo que a faz tem despertado a atenção dos que se voltam para o estudo da literatura portuguesa. A explicação para este fato tem sido buscada na índole subjetiva do povo - e do homem - português. Assim se explicaria a sua decisiva inclinação para a literatura e, em espe­cial, para a poesia. Teófilo Braga, um dos primeiros estudiosos a insistir no subjetivismo como caráter definidor do gênio português, afirma, em prefácio ao Parnaso Português Moderno, que "Em Portugal todos são poetas, uns em segredo, como um vício oculto; outros não passam dos limites efêmeros do jornalismo; outros alentam o fogo sagrado até aos vinte e cinco anos, como o sr. Herculano; outros têm a coragem de pro­duzir volumes, continuam a publicar versos depois de directores de secre­taria, depois de serem embaixadores e ministros."

Fidelino de Figueiredo, em Características da Literatura Portu­guesa, já aborda o problema por outro ângulo. Para ele, o necessário é que haja "elementos universais" no gênio nacional desse pequeno povo para a realização de uma grande e "nobre literatura".

A reduzida população portuguesa é invocada, modernamente, por autores como Óscar Lopes para justificar o que alguns consideram como limitações do gênio português para determinados aspectos das artes. Limitações estas que foram referidas também por Fidelino de Figueiredo, no citado estudo.

Comentando estas considerações, diz Óscar Lopes: "No domí­nio das Letras, segundo alguns, seríamos avessos ao teatro, à crítica esté­tica, à especulação filosófica, quem sabe se ao romance (pelo menos ao romance de observação externa); nas Artes, seríamos incapazes de criar uma escola nacional de pintura ou de música, noutros campos faltar-nos-iam o espírito de cooperação, a autodisciplina racional, a capa­cidade de abstracção e de síntese científicas."


(...)

Quanto ao caráter subjetivo da literatura portuguesa, seria possível estudá-lo do ponto de vista do profundo sentimentalismo refle­tido na literatura, esta quase sempre impregnada do "dom das lágrimas", na expressão de Moniz Barreto, ou do saudosismo, que, para Teixeira de Pascoaes, constitui a própria expressão da alma portuguesa. Um excerto, porém, de A Literatura Portuguesa , Expressão duma Cultura Nacional, de Jacinto do Prado Coelho, engloba estes e outros aspectos, e aponta para o lirismo como a expressão-síntese desta literatura:



Se tivermos em conta os autores que mais deti­damente enunciaram as características da literatura portuguesa, como Fidelino de Figueiredo, Aubrey Bell, António Sérgio, António Salgado Júnior e tam­bém algumas achegas de historiadores, etnólogos e ensaístas, como Jaime Cortesão, Jorge Dias, etc., pode­remos talvez concluir que duas tónicas fundamentais individualizam a cultura e a literatura nacionais: o subjectivismo e a acção. No primeiro se filia, com efeito, a já proverbial inclinação lírica; e é forçoso reconhecer que o mais abundante caudal desta lite­ratura, de fins do século XII aos nossos dias, tem sido o da poesia lírica - poesia amorosa - terna ou apaixona­da, obsessiva, nostálgica. Em parte por esta feição literária, comum à Galiza e a Portugal, e ainda porven­tura porque a mesma índole se manifesta no plano da vida quotidiana, nos séculos XVI e XVII Galegos e Portugueses tinham fama, na Península, de senti­mentais e muito atreitos ao amor - fama que, por seu turno, havia de projectar-se na literatura.



(BUENO, Jayme Ferreira. Távola Redonda: uma experiência lírica. Curitiba: Champagnat, 1983, p. 1-3)

sábado, 26 de julho de 2008

JOHN FANTE TRABALHA NO ESQUIMÓ: UM AGRADÁVEL SOPRO DIFUSO



Rogério Pereira, diretor e editor do jornal curitibano de literatura Rascunho, certa vez disse que a pior coisa do mundo é ter amigos escritores, ou conhecidos escritores. Claro, para um crítico literário. O motivo que Rogério Pereira alega é que se um crítico literário tem amigos ou conhecidos escritores, ele tende a mentir sobre o livro que está analisando, ou fala a verdade e perde a amizade. É uma encruzilhada, de fato. Mas não quando o amigo ou conhecido é um grande escritor. Meu caso, que sou conhecido, e imagino que agora já possa me considerar amigo, do escritor carioca Mariel Reis.

Meu contato com Mariel começou através deste singelo blog, quando ele me enviou um e-mail elogiando um artigo que eu havia escrito sobre Raul Brandão. A partir de então começamos a trocar algumas idéias, alguns contos e Mariel me disse que tinha um livro inédito de contos, o qual me enviou para ler e dar meu parecer. Como na época eu estava pesquisando para minha monografia no curso de especialização em literatura brasileira, fui deixando a leitura do livro de Mariel pra depois. Não sabia eu o que estava perdendo. Eu podia ter deixado um Alfredo Bosi pra depois, um Candido, um Stuart Hall.

O volume leva o título de John Fante trabalha no Esquimó (2008), e reúne 16 contos. Mariel aborda temas ligados à classe média brasileira, como solidão, a violência urbana, carência moral entre os membros da sociedade, e em vários dos contos se aproxima muito do escritor curitibano Dalton Trevisan. Mariel leva muito em consideração o espaço urbano, fazendo deste, um ambiente degradado, ocupado por párias e elementos marginalizados, como no conto A Gorda, que conta a aventura sádica de um garoto de programa com uma cliente extremamente gorda, repulsiva em sua imagem e em seu caráter.

Os segmentos de imagens que Mariel trabalha nessa narrativa sombria é de extremo bom gosto e mostra um escritor que domina perfeitamente a técnica do conto, que, sendo uma narrativa curta, tende a propiciar ao leitor uma tensão que está na iminência de acabar. Mas não acaba com o final, e isso torna o conto mais saboroso ainda.

Os contos de Mariel, além de mostrarem tipos estranhos e grotescos, também apresentam uma atmosfera fantástica, bem ao estilo de Murilo Rubião e Moacyr Scliar. O conto Jonas, a Baleia, ao mesmo tempo em que faz alusão ao profeta bíblico, faz alusão também à Metamorfose, de Kafka, pois nesse conto um jovem acorda transformado numa baleia. E o mais interessante, para confirmar que Mariel pratica também literatura fantástica, é que no final da narrativa, assim com Gregor Samsa, Jonas é visto dessa forma, e seu vizinho não estranha o fato de haver uma baleia no quarto e até considera o olhar do animal semelhante ao de Jonas, e dessa maneira o absurdo é aceito dentro do universo da ficção. É o que Todorov chama de sobrenatural aceito, em seu livro Introdução à Literatura Fantástica.

No conto A Viagem, mais uma vez Mariel encontra na violência urbana tema para sua narrativa. Mas não se resume a isso. Nesse conto há um narrador em primeira pessoa (outra característica de Mariel é oscilar muito o seu foco narrativo), que é um assaltante de ônibus num ambiente periférico no Rio de Janeiro, mas é um assaltante que tece considerações metafísicas sobre os atos criminosos que comete. Ele está cansado do trabalho que exerce, e quer parar. Esse conto é um exemplo de que a literatura de Mariel Reis não pode ser vista como pessimista, mas sim como realista, e até há uma pitada (contida, claro) de esperança.

Em todos os contos, ou em quase todos, Mariel além de construir personagens de personalidade forte e decadentes moralmente, também leva muito em consideração o espaço. O espaço em todo o livro é muito bem trabalhado, e em algumas das narrativas exerce influência direta sobre os personagens. Como acontece no conto O Prisioneiro, entre os melhores do volume. Há nesse conto referências diretas à sociedade e às suas mazelas, como o caso da violência e da superlotação dos presídios. O protagonista narrador, um presidiário que espera sua liberdade, é um indivíduo que já se acostumou à sua atual situação, e dessa maneira, é alguém totalmente assimilado ao meio ao qual pertence. Mesmo não querendo permanecer preso, não se sente capaz de retornar à sociedade e as considerações filosóficas que tece é de extrema beleza e profundidade.

O conto Por Mil Demônios é o maior exemplo de literatura fantástica que há no livro. É dividido em oito partes, e conta a história de uma moça que carrega em seu ombro esquerdo um demônio. Depois percebemos que o demônio carrega em seus ombros homúnculos. É uma metáfora sobre a conturbada relação interpessoal, pois todos estão (nesse conto) fadados a sucumbir aos próprios demônios e também aos demônios dos outros.

Em relação à técnica de Mariel nesse conto, é interessante apontar que há mais de um narrador, e com isso ele demonstra bom domínio da técnica narrativa. Mariel durante a composição da narração soube realizar as mudanças narrativas na hora certa, sem experimentalismos baratos e amadores. Há uma forte presença de um discurso polifônico nesse conto, que em muitos momentos exige atenção dobrada do leitor. Também há de se levar em consideração a presença de um narrador onisciente e onipresente, que narra mas não participa dos fatos narrados. É uma inteligente manobra de mudança do foco narrativo.

A opção pela narrativa auto-diegética (em primeira pessoa) dá ao escritor uma ferramenta a mais para trabalhar a construção de seus personagens (seu interior), pois o foco narrativo em primeira pessoa permite a exploração do fluxo de consciência. Junto com isso, há a opção de Mariel pela ausência de diálogos, fato que permite uma realização quase completa do fluxo de consciência. Esse fato se evidencia mais naqueles contos que têm como tema o espaço e o ambiente urbano.

Como um todo, Mariel Reis fez em John Fante trabalha no Esquimó um trabalho notável. Mesmo discordando de Mariel em algumas escolhas narrativas em alguns dos contos, seu livro é de extrema importância para o cenário literário atual, principalmente em relação ao conto, que estava precisando de um sopro de vida. Mariel Reis consegue isso. E assim, quem sabe, como no conto que dá título ao livro, não passemos a ver o rosto de Mariel em cada esquina do Rio de Janeiro, sempre à procura do autor preferido.