domingo, 8 de maio de 2011

CARTAS A SANDRA: ROMANCE EPISTOLAR E METALINGUAGEM


Quando Vergílio Ferreira morreu em 1996, ele deixou um romance inacabado, Cartas a Sandra. Esse breve romance é composto por capítulos em forma de cartas, e há uma clara alusão ao próprio fazer literário. As cartas são escritas por Paulo, protagonista de Para Sempre (1983)e são dirigidas a Sandra, sua esposa, falecida no romance anterior.

As cartas não seguem temas específicos nem tratam de assuntos muito claros, pois são, na verdade, as reflexões de Paulo sobre sua convivência com Sandra. Em momento algum há diálogos, pois Paulo se dirige à sua esposa morta, e o faz de maneira bastante diferente do que se lê em Para Sempre. Em Para Sempre Paulo constroi a imagem de Sandra de uma forma muito mais idealizada, mais distante, ao passo em que nas cartas Paulo se despe de certos pudores sentimentais que o aprisionava a uma Sandra irreal.

Quem organiza as cartas e tece comentários acerca do critério de organização é a filha do casal, Xana. No início do livro há uma apresentação escrita por Xana que diz não saber se as cartas escritas por seu pai são de fato cartas ou se são textos que fazem parte de um romance inacabado. É citado por Xana o livro Para Sempre, escrito por Paulo, seu pai, portanto, há em Cartas a Sandra elementos muito comuns da pós-modernidade. Um exemplo claro disso é essa movimentação de vozes (polifonia) e o constante embaralhamento formal entre realidade e ficção, narração e narrativa.

A metalinguagem é tratada tanto por Xana, no prefácio fictício, quanto por Paulo em suas cartas. Em vários momentos Paulo se refere ao ato de escrever, não só às cartas, mas também ao seu romance Para Sempre. Desta maneira Vergílio Ferreira se antecipa à compreensão do leitor e tece implicações formais complexas muito elaboradas. O que mais chama a atenção em Cartas a Sandra é exatamente esse processo de decifração do texto proposto pelo(s) autor(es), pois há três vozes: a de Vergílio Ferreira (autor empírico) e as vozes de Paulo e Xana (autores-modelo).

Ainda há a hipótese de todas as cartas terem sido escritas por Xana, como parte de um romance escrito por ela. Nesse caso teríamos uma movimentação de narradores bastante intrincada, pois Xana deixaria de ser (dentro da narrativa de Vergílio Ferreira, autor empírico) autor-modelo e passaria a ser autor-empírico. O prefácio escrito por ela, nesse caso, não seria uma apresentação sobre seus critérios de escolha das cartas de seu pai, mas sim um prefácio falso, ficcional dentro da própria ficção.

Percebe-se desde a introdução de Cartas a Sandra que trata-se de uma obra típica de Vergílio Ferreira, com os elementos formais que o consagraram, como a prosa poética, fluxo de consciência, períodos longos, ausência de pontuação convencional, porém não deixa de ser um romance inovador. No início da apresentação de Xana ela diz que a última carta escrita por seu pai ficou inacabada, fato curioso que remete à morte do próprio Vergílio Ferreira.

A décima e última, que fui eu já a dactilografar, deixou-a incompleta por ter morrido subitamente enquanto a escrevia. (p.11)

Assim como a última carta de Paulo a Sandra ficou inacabada, o último romance de Vergílio Ferreira também ficou. Coincidências, ironias do destino que dão significados plurais a Vergílio. Não podia ter maneira melhor de despedir-se da vida. Como sempre em grande estilo.