quarta-feira, 14 de outubro de 2009

FERNANDO NAMORA: NEO-REALISTA INDEPENDENTE E SUI GENERIS


Na história da literatura houve grandes escritores que foram médicos. No Brasil um dos expoentes máximos da literatura nacional, João Guimarães Rosa, era médico, e em suas atribuições de médico percorreu o sertão mineiro em busca de fatos, histórias e pessoas que acabaram por contribuir na composição de Grande Sertão: veredas. Outro grande escritor brasileiro, ainda vivo, também foi médico, especialista em saúde pública, trata-se do gaúcho Moacyr Scliar, que durante vários anos de sua vida se dedicou à profissão de médico e paralelamente a de escritor, até se aposentar e se dedicar integralmente à literatura.

Em Portugal também há vários exemplos de médicos escritores, ou escritores médicos, como Miguel Torga, António Lobo Antunes e Fernando Namora. Todos eles foram, de fato, grandes escritores e sempre tiveram grande admiração da crítica e de um bom número de leitores. Fernando Namora, que publicou suas experiências como médico no livro Retalhos da Vida de um Médico (1949), foi um escritor versátil, prolífico, praticante de vários gêneros como a poesia, conto, romance, crônica e outras narrativas.

Fernando Namora nasceu em Condeixa, distrito de Coimbra, em 1919. Formou-se em Medicina pela Universidade de Coimbra e estreou na literatura como poeta em 1938 com o livro Relevos. Suas principais obras são Terra (poesia, 1940), As Frias Madrugadas (poesia, 1959), Retalhos da vida de um Médico (contos, duas séries, 1949 e 1963), Cidade Solitária (contos, 1959), Fogo na Noite Escura (romance, 1943), Casa da Malta (romance, 1945), Minas de San Francisco (romance, 1946), A Noite e a Madrugada (romance, 1950), O Trigo e o Joio (romance, 1954), O Homem Disfarçado (romance, 1957), Domingo à Tarde (romance, 1961).

Mesmo Fernando Namora tendo produzido mais narrativas longas (romances e novelas) foi também um grande contista, e o livro Resposta a Matilde (1980) é um belo exemplo disso. Durante muito tempo Fernando Namora esteve ligado ao movimento neo-realista, porém sempre manteve-se independente, fato que permitiu com que o escritor transitasse o núcleo de suas temáticas e seu estilo.

Neste artigo abordarei o primeiro texto que compõe o livro Resposta a Matilde, Era um desconhecido, que apesar de fazer parte de um volume de contos, está mais próximo de uma novela. Em Era um Desconhecido, melhor narrativa do livro e talvez um dos melhores escritos de toda carreira de Namora, é narrada a história de um triângulo amoroso que não se realiza. Tudo começa quando Arnaldo, um professor particular de matemática, ou explicador, passa a frequentar um discreto café em um espaço entre duas aulas. Bom observador, claro, com a ajuda do narrador, Arnaldo passa a conhecer os outros frequentadores do local que são sempre os mesmos, e assim Fernando Namora parece que vai tecendo uma sutil crítica ao marasmo da vida da classe média lisboeta.

Depois de alguns capítulos tecendo considerações sobre o protagonista e constantemente se dirigindo ao leitor (ao estilo de Sterne e Machado de Assis), o narrador definitivamente faz com que destinos diversos se cruzem, quando Arnaldo e Manuela passam a trocar olhares, e é a partir desse momento que a trama começa de fato. Em uma breve saida do café, Manuela vai atrás de Arnaldo e rapidamente trocam números de telefone e, para a surpresa de Arnaldo, Manuela não parece se importar com a constante presença do marido. O que vem a acontecer em seguida já encerra o mistério, pois o fato de Manuela se interessar por Arnaldo tão abertamente era um plano do próprio marido, Daniel.

O plano era basicamente a total liberdade de Manuela para ter relações sexuais esporádicas com o homem que ambos, Manuela e Daniel, escolhessem, pois Daniel se sentia na obrigação de permitir tal relação, pois havia traído Manuela no passado e a relação da mulher com o professor seria uma espécie de indenização. O escolhido foi Arnaldo. Seu espanto foi tanto que a um primeiro plano sua reação foi negar categoricamente a proposta que recebera, pois a relação que teria com Manuela teria o aval do marido, mas teria que acontecer em sua casa, talvez às vistas de Daniel. Arnaldo sente-se atraido por Manuela, mas jamais concordaria em iniciar um relacionamento daqueles na própria casa do marido da amante, por isso aluga um quarto de uma senhora num bairro mais afastado, e concorda com o plano apenas se ambos pudessem se encontrar neste quarto. No início Daniel reluta mas acaba aceitando. O desfecho é trágico, pois num momento (mais um) de irracionalidade, Daniel não suportando a traição da mulher, a qual ele próprio havia combinado, comete suicídio nos arredores da casa e a narrativa se encerra aí.

Há de se levar em consideração nesse texto as formas como o autor conduz toda a narrativa. O narrador assume um claro tom de ironia diante do leitor, pois a todo o momento, principalmente nos três primeiros capítulos, vai construindo a narrativa aos poucos, como se precisasse da ajuda de quem o lê. Em vários momentos o narrador assume não saber qual direção seguir, e conforme vai contando (escrevendo) vai criando nomes, posições sociais e é dessa forma que o enredo vai se desenvolvendo até alcançar certa consistência.

Este espécime, que eu encontro no café pela quinta ou sexta vez, sempre à mesma hora, usa colete (outro sinal característico) e só deixa o último botão desabotoado, naturalmente coincidente com o sítio onde o ventre começa a expandir-se. Vida sedentária, está visto. As horas livres, que nem serão muitas, passa-as o nosso herói aqui, no Café Estrela, uma ou outra tarde no cinema (...) e, aos domingos, arejado de brisas e odores, a conduzir briosamente o automóvel até um restaurante dos arredores, acompanhado da família (se é que a tem, por hora vamos admitir que sim)... (p.12)

Nota-se claramente neste fragmento a indecisão do narrador por qual caminho seguir (tinha ou não tinha família o protagonista?) e as incertezas de sua narrativa se refletem nos acontecimentos que ele impõe aos personagens. A metalinguagem é outra faceta claramente assumida aqui, e o narrador, que ao mesmo tempo em que se insere no espaço físico da narrativa, portanto seria uma personagem comum como outra qualquer, também é o narrador onisciente e onipresente que narra todos os pormenores acontecidos entre quatro paredes.

O que permite toda essa manobra de confluência verbal e temática são três elementos básicos: o primeiro é o tom jocoso adotado pelo narrador ao contar a história, que parece claramente ser as divagações de um escritor ao produzir um texto literário transpostas no papel. E a intenção de Fernando Namora provavelmente deve ter sido esta. Outro elemento que é fundamental para a compreensão do texto é uma espécie de epígrafe escrita pelo autor, Fernando Namora (pois há aqui as presenças de um autor-modelo e de um autor-empírico):

Um dia Matilde disse-me:

- Enfadam-me as tuas estórias. Todas poderiam ter acontecido.
- E isso é um defeito?, repliquei, um tanto amuado.
- Para mim, é. Prefiro coisas inverossímeis, incomuns.
-Mas as coisas inverossímeis onde acontecem é na vida. A literatura tem uma lógica, a vida tem outra.
- Pois experimenta misturá-las. Talvez te dê o mesmo resultado de quando se cruzam as linhas telefônicas e nos pomos a escutar uma conversa alheia, que nos revela insolitamente uma outra gente e um outro mundo. E, no entanto, esse mundo é o nosso, essa gente somos nós.
Cismei um pedaço naquilo e, por fim, anuí:
- Vou tentar. Depois telefono-te.
Meses passados, disquei o número de Matilde.

O terceiro elemento que permite toda essa manobra narrativa é o paratexto, ou seja, trata-se de um termo adotado por Umberto Eco em Os seis passeios pelos bosques da ficção (1994), que é uma informação adicional da obra que faz referência à própria obra, como a palavra "romance" escrita na capa de um romance, ou "conto", "crônica", "poesia", etc. Em Resposta a Matilde o paratexto indica a palavra "divertimento", já dando uma prévia da ironia com a qual o leitor irá se deparar.

Fernando Namora mostrou ser um escritor que em toda sua vasta obra conseguiu se inovar, se reinventar. Os outros contos que compõem Resposta a Matilde também são dignos do grande escritor Fernando Namora, como O Parente da Austrália, Dois ovos ao Fim da Tarde e O Rio. Mas em termos de estilo, de escrita e de temática nenhum deles supera Era um desconhecido, que pode ser lido como um conto mais longo, ou talvez uma novela. Era um Desconhecido apresenta uma estrutura de novela, de romance (a comprovar as divisões em capítulos), porém o desfecho, o clímax é tipicamente de um conto. O final que não acaba, um aparente embaralhamento formal que leva a narrativa a uma atmosfera trágica e, ao que tudo indica, nonsense.

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