domingo, 22 de novembro de 2009

"PRESENÇA" E RUPTURA: O BARÃO E O DIALOGISMO DE BRANQUINHO DA FONSECA


Desde o início do século XX a meados dos anos 50 o cenário literário português esteve repleto de revistas de literatura, a começar por Orpheu, revista criada em 1915 por Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro e Almada Negreiros. O Orfismo é o primeiro movimento literário considerado moderno, abrindo terreno para artistas (principalmente poetas) de correntes diversas, como o Futurismo e o Decadentismo, ambos já bem difundidos por toda Europa.

Em 1927 surge outro grande movimento literário (talvez um dos mais importantes em Portugal) tendo início também com uma revista, Presença. O Presencismo teve como mestres os poetas de Orpheu, e segundo Massaud Moisés, "não só continuava como renovava o pensamento órfico". Os presencistas defendiam uma literatura livre das "impurezas" acadêmicas e pensavam na estética como fim principal de suas produções. A Presença também tinha um interesse especial pela poesia, tanto pela crítica quanto pela criação artística, (seguindo assim seus mestres de Orpheu), mas muitos presencistas se aventuraram na prosa, principalmente os que mais tarde se tornaram dissidentes.

Como a Presença surgiu em um intervalo entre as duas grandes guerras que devastaram a Europa, muitos escritores neste momento estavam interessados em temáticas sociais, como viria a acontecer com grande entusiasmo no final dos anos 30 com o Neo-Realismo. O que aconteceu foi que muitos presencistas romperam com a revista, tornando-se assim dissidentes, como Miguel Torga, Edmundo de Bettencourt e Branquinho da Fonseca. Esses escritores que romperam com o movimento seguiram caminhos diversos. Miguel Torga, por exemplo, teve uma breve incursão pelo Neo-Realismo e também passou a se interessar por gêneros diferentes (conto e romance). Edmundo de Bettencourt produziu mais poesia, mas não permaneceu presencista e nem tornou-se neo-realista. E Branquinho da Fonseca, outro dissidente, também continuou produzindo poesia mas interessou-se mais pela prosa.

Branquinho da Fonseca depois de ter se afastado da Presença(segundo o próprio autor, julgou que a revista "havia repudiado seus ideais mais primitivos"), manteve-se num interregno, pois não se filiou aos neo-realistas, apesar de ter se interessado, a partir da ruptura, pelo coletivo. Branquinho da Fonseca passa a explorar o aspecto dialógico (Bakhtin) e deixa de se interessar pelo aspecto monológico. E a opção pela prosa é fundamental para a realização deste movimento de ruptura.

O Barão (1942) é a obra fundamental de Branquinho da Fonseca. Nela há vestígios de um presencista, mas também elementos inovadores do dissidente. O Barão é uma novela que em pouco mais de cem páginas apresenta um enredo sem complicações formais aparentes, sem experimentalismos linguísticos. Este livro é o divisor de águas na obra de Branquinho da Fonseca, pois é nesta obra em que todos os novos elementos que estava explorando vêm à tona, como a ambiguidade e o foco narrativo em primeira pessoa.

A narrativa de O Barão começa com o narrador-protagonista, um "inspetor das escolas de instrução primária", relatando uma viagem que fez há muito tempo, e de sua estada no solar de um Barão decadente. O narrador sai de Lisboa com destino à Serra do Barroso, e lá chegando fica hospedado na casa do fidalgo, uma figura excêntrica, despótica, arrogante e curiosa que passa a mostrar, já no início, hábitos nada ortodoxos e estranhos ao narrador.

O Barão bebe vinho o tempo todo e numa atmosfera impregnada de escuridão e de fatos que ficam sem solução, o Inspetor é testemunha de alguns acontecimentos que merecem atenção. Primeiro, quando o narrador chega ao vilarejo e hospeda-se na casa do Barão, ele padece de uma fome terrível que o atormenta, e assim, não presta atenção às histórias do Barão. É interessante ressaltar aqui que a fome do narrador é um fator que exerce influência direta nos acontecimentos, pois a novela é autodiegética, portanto o leitor sabe apenas o que o narrador sabe, e esse é um dos fatos mais importantes e interessantes da narrativa. É a ambiguidade que Nelly Novaes Coelho cita no posfácio da edição brasileira da Editora Verbo:

A verdade é que a uma primeira leitura de contacto (a leitura desprevenida ou "ingênua" para a natural fruição da obra), chegamos ao fim com muitas indagações sem respostas objetivas. Quem é o Inspetor? Será realmente apenas o modesto funcionário público que nos conta uma aventura? O homem sem sonhos e sem possibilidades de os ter que sonha uma vida de ociosidades sedentárias? O burocrata docilmente moldado à engrenagem rotineira, "farrapo nas mãos de toda gente"? Quem é realmente o Barão? Será apenas o fidalgo decadente e grosseiro que inexplicavelmente nos atrai?

Toda a narrativa do Inspetor é feita desta forma. Se o narrador fica sem saber ou ver determinado acontecimento, o leitor também fica. Daí as considerações da Professora Nelly Novaes Coelho sobre a ambiguidade de Branquinho da Fonseca. Ao mesmo tempo em que o leitor se depara com um texto linear, estanque e com uma linguagem direta, também se depara com todos esses símbolos presentes na narrativa, como a relação maniqueísta entre o Barão e o Inspetor; aquele representando uma fidalguia decadente e vazia; este representando uma classe média ingênua e alienada, oprimida pelo empreguismo (não carreira, mas empreguismo mesmo).

Um momento muito interessante da narrativa é quando depois de já ter devidamente jantado e saciado sua fome, o Inspetor é levado pelo Barão para ver o espetáculo da Tuna. A atmosfera de mistério durante o evento é muito interessante, e durante as músicas e as canções outro elemento exerce um papel fundamental na narrativa até o fim: a bebida. Nessa aparição da Tuna o Inspetor já havia bebido muito vinho e licor e não seguia mais uma linha lógica de raciocínio, e sua embriaguez se reflete na escrita. Durante a apresentação da Tuna numa das salas do casarão do Barão, o Inspetor, o Barão e a criada banham-se em vinho, dançam ao som da música inebriante e uma atmosfera orgiástica assume os andamentos da narrativa.

Depois que a Tuna encerra suas atividades, o Barão e o Inspetor saem pelo bosque e caminham entre as árvores numa noite sem lua, completamente escura. É nesse momento que o Barão ouve passos e afirma que são de pessoas. O Inspetor não lhe dá ouvidos, mas depois de alguns minutos de caminhada, já acostumado com a escuridão, também passa a ouvir os passos e outros barulhos suspeitos. O autor dá a entender aqui que o Barão estava sendo perseguido pelos criados e estaria prestes a se tornar vítima de um motim. Mas a tensão logo é quebrada e o leitor percebe que aquilo tudo foi criado pelas mentes alcoolizadas do Inspetor e do Barão.

O Barão tinha a intenção de levar à "Bela Adormecida" uma rosa, e depois que o Inspetor e o Barão se perdem na escuridão, só voltam a se encontrar no final da narrativa, quando o Barão ferido e aparentemente moribundo diz ao Inspetor:

Mas ficou...na janela...

O Barão se refere à flor que deixara na janela da "Bela Adormecida", que em momento algum do texto é revelada. Pode ser a criada, pode ser alguma mulher qualquer, não sabemos, e é esse mistério que dá tanto valor ao livro. A ambiguidade apontada por Nelly Novaes Coelho é de extrema importância para a compreensão do texto. Nada do que é narrado pelo Inspetor tem apenas o significado do que parece ter. O sentido e o significado das palavras na narrativa vão muito além de sua forma.

Branquinho da Fonseca realiza em O Barão o melhor de sua produção literária. É um livro síntese que abrange elementos anteriores e posteriores de sua ruptura com a Presença, apesar de ficar evidente que seguiu um caminho diverso do que fazia antes. A começar pelo gênero que escolhe, a novela (prosa), fato que já difere muito de sua produção presencista. A preocupação com o "outro" é assumida, mesmo não sendo tão clara e nem se aproximando do Neo-Realismo, mas fica claro que está presente no discurso assumido pelo narrador e também por Branquinho da Fonseca. A relação lírica com a Presença foi substituida por uma epicidade que só seria possível, segundo o próprio autor, na prosa. E O Barão é o melhor exemplo disso.

3 comentários:

Tania Anjos disse...

Caro amigo Daniel,

você não magina a minha alegria e emoção ao receber o seu livro.


Muito obrigada pela gentileza e carinho. Um livro sempre é para sempre...

Tenha um excelente Natal e Ano Novo ao lado dos seus com muita saúde e paz.

Um forte abraço da amiga,

Taninha

PS: Quanto deletei meu hotmail, perdi meus contatos. Mande-me seu e-mail, ok??

Daniel Osiecki disse...

A você também, Taninha, tudo de bom e bom final de ano.

Luis Miguel da Fonseca Barrocas disse...

Bom dia,

Sabe-me dizer se conhece algum livro que estabeleça a relação entre O Barão de Branquinho da Fonseca e o Barão de Basto de Cabeceiras de Basto?

Cumprimentos,

Luís Miguel