domingo, 27 de dezembro de 2009

ESCRITORES PORTUGUESES CONTEMPORÂNEOS (V) - ANTÓNIO RAMOS ROSA: DO LIRISMO À METAPOESIA



Como eu havia escrito no último artigo da série Escritores Portugueses Contemporâneos, este é o último de cinco artigos. Também como já havia escrito anteriormente, optei por abordar nos dois últimos da série, autores que não fossem romancistas, como o contista Urbano Tavares Rodrigues e António Ramos Rosa, poeta, que é o último escritor português contemporâneo abordado nesta série.

António Ramos Rosa nasceu em Faro, em 1924. Atualmente vive em Lisboa e dedica-se em tempo integral à atividade literária. Publicou seu primeiro livro em 1958, O Grito Claro. Depois vieram Viagem Através de uma Nebulosa (1960), Voz Inicial (1960), Sobre o Rosto da Terra (1961), Ocupação do espaço (1963), Terrear (1964), Estou vivo e escrevo sol (1964), A construção do corpo (1969), Nos seus olhos de silêncio (1970), A Pedra nua (1972), O Ciclo do cavalo (1975), Boca incompleta (1977), A nuvem sobre a página (1978), etc.

Em 2005 Rosa Alice Branco e Rodrigo Petronio organizaram e prefaciaram a antologia Animal Olhar, na qual fizeram um apanhado geral da obra de Ramos Rosa. O interessante neste volume é a forma não cronológica em que os poemas estão dispostos. Os primeiros poemas são de 2005, e os últimos datam de 1958,já posteriores a sua participação na revista Árvore (1952 - 1954).

No início de sua produção poética, António Ramos Rosa voltou-se a um lirismo que mais tarde viria a combater. Data desta época sua produção na Revista Árvore, como diretor e poeta. Há de se levar em consideração a grande difusão de revistas literárias que surgiram em Portugal nos anos 50, como Árvore, Cassiopeia (1956), Távola Redonda (1950 - 1954), Graal (1956 - 1957)etc, e nesse universo em que vários poetas (muitos jovens e estreantes)aderiam a revistas, o lirismo era um dos elementos defendidos por várias revistas, como se o lirismo fosse um retorno à essência real da poesia portuguesa. No ensaio "Lirismo ou haverá outro caminho?", David Mourão-Ferreira discute exatamente essa temática. Cita Ferreira:

Se o Lirismo é, como definiu Paul Valéry, "le développement d'une exclamation" - verificar-se-á que toda a Poesia começa por ser lírica. São líricas as primeiras manifestações poéticas de um povo, de uma geração ou de um indivíduo. (Em cada Poeta se repete, vertiginosamente e de maneira quase estenográfica, o processo geral da história da Poesia...).

Este fragmento do ensaio de David Mourão-Ferreira nos mostra claramente o ideário da revista Távola Redonda (da qual David Mourão-Ferreira foi fundador e diretor) e de várias outras, já citadas no texto, inclusive Árvore, de António Ramos Rosa. Porém o que nos interessou mais em sua poética foi sua fase mais madura, sua produção recente, já dos anos 2000.

Nota-se claramente em sua poesia uma preocupação metafísica que não se via no início de sua obra poética, e que torna, muitas vezes, seus versos muito ambíguos, repletos de elementos antagônicos, como se vê no poema "Caminha para a minha fronte",de 2005. O início do poema já é um questionamento: "poderemos acaso erguer uma torre de sossego/como se estivéssemos no interior do mundo?". O eu-lírico não busca em momento algum com essa indagação inicial as respostas de suas perguntas, pois sabe que as não há, mas seu questionamento é uma mera desculpa para iniciar uma reflexão sobre a desumanidade do ser humano: "nós somos descendentes dos répteis/e por isso amamos o letargo solar entre sombras vegetais". No verso a seguir o poeta entra de fato no que pretende abordar, a inquietação metafísica: "poderíamos assim ouvir o rumor da ausência/como um rosto entre longínquas nascentes/e a pulsação das pedras o obscuro júbilo do fogo". Aqui nos deparamos com um dos principais elementos da poética de António Ramos Rosa,que é a disparidade entre elementos, o antagonismo. Por exemplo, como se ouve o que não há? "Estaríamos na intimidade do olvido", nos dá uma ideia de abandono e de esquecimento, como a própria palavra final nos revela.

Estes fragmentos mostram que a voz do poema busca uma imersão nos mistérios do ser humano, é uma olhada interior. Também é interessante ressaltar a ausência de pontos ou vírgulas nos versos, o que nos mostra claramente um desapego formal com padrões clássicos da poesia. António Ramos Rosa serve-se do significado com excesso, não se importando com experimentalismos, e os símbolos ambíguos que ele constroi são reflexos disso.

No poema "Vazio Pleno", que está no livro Nascente Submersa (2002) Ramos Rosa serve-se de um outro artifício temático muito comum em sua poética, a metapoesia.O poema começa da seguinte forma: "como uma palavra na profundeza do diamante/Ela está sossegada como uma ilha branca/e tão vazia e plena como um cântaro". Há de se levar em consideração aqui a palavra "vazio", pois o poeta diz que a palavra é vazia, e só pode ser vazia de significado, portanto, a forma é o que mais interessa a essa voz no poema.

Alguns versos depois, há uma passagem que remete a outra constante na poética de Ramos Rosa, que é a Terra como símbolo metafísico. "Calada está com a terra como uma chama de água/na tranquila veemência do seu fundo solar". A terra aparece em várias passagens, e em todas elas tem esse significado simbólico do sustento, mas não é o sustento físico, e sim o metafísico. E qual seria esse sustento? Ramos Rosa não pretende apresentar uma tábua de respostas, mas sim apresentar um problema, e é o que ele faz.

Voltando à metapoesia, há um verso que diz: "um sopro de cores irrompe da sua boca redonda/e do umbigo solta-se-lhe uma translúcida serpente".Um "sopro de cores" são os vários sentidos da palavra e a relação entre significante e significado. Como se pode notar, há uma ambivalência nos versos deste poema, pois ao mesmo tempo em que Ramos Rosa se preocupa muito mais com o significado, às vezes aparece de surpresa uma voz e nos surpreende com o significante, como fica claro no seguinte verso: "o ritmo do pulso/mede a lentidão dos montes a imensa torrente azul do céu".

O ato de escrever é levado a um extremo (como já relatado) metafísico, como se uma das chaves para decifrar o que busca (o poeta) só fosse possível através da poesia. "Tão lenta é a existência, tão indolentemente lúcida/que as águas consteladas sob um bosque de nuvens/batem seu estrépito na página do ventre". A existência sem a poesia, ou sem o ato de escrever em geral, é vazia. Para tentar confundir um pouco mais o leitor, ou para deixá-lo à deriva, há mais misturas de elementos de naturezas distintas. No fim tudo faz sentido, tudo se encaixa, mas nenhum mistério é revelado. É mais um dos antagonismos de Ramos Rosa.

No final do poema há esta passagem enigmática: "no branco minarete em que repousa/vê o polvo azul que voa no meio dos pássaros/coberto de raízes e lâminas num torvelinho imóvel/Está no centro do dia , desnuda, repousada/e o seu nome é relâmpago de água que ilumina/as obstinadas, desamparadas palavras soterradas". Há uma alusão, nem tão clara assim, à realização poética, à metapoesia, pois o "branco minarete" aqui é o papel em branco, um dos objetos de trabalho do poeta, e as "raízes e lâminas num torvelinho" sáo as palavras atiradas ao papel a esmo, com fúria, com desejo.

O fazer poético em momento algum é calmo, ele é revolto como o próprio fluxo de pensamentos, como o é a mente do poeta no momento de criação. As palavras são buscadas nos côncavos do ser humano(do poeta), e sua voz clama alto ao mundo para ser ouvida. Mas nem sempre encontra eco no outro, na verdade raramente alcança algum resultado no outro, mas o poeta é obstinado, e mesmo não oferecendo uma tábua de respostas (como já relatado), é no próprio ato de escrever que terá sua resposta final.

POEMAS ANALISADOS NESTE ESTUDO

CAMINHA PARA A MINHA FRONTE

Poderemos acaso erguer uma torre de sossego
como se estivéssemos no interior do mundo? Nós somos descendentes dos répteis
e por isso amamos o letargo solar entre sombras vegetais
Poderíamos assim ouvir o rumor da ausência
como um rosto entre longínquas nascentes
e a pulsação das pedras o obscuro júbilo do fogo
o sorriso cintilante de um regato
Estaríamos na intimidade do olvido
como a pura ignorância de uma sombra lúcida
Seríamos uma erva escrita pela saliva da terra
numa adequação vibrante e sóbria
Veríamos ascender o obscuro em lâmpadas nuas
e toda a espessura seria dúctil e porosa
A identidade encontraria a origem numa flora leve
a hospitalidade de uma terra
nas constelações de argila de basalto e esterco

VAZIO PLENO

Como uma palavra na profundeza do diamante
Ela está sossegada como uma ilha branca
e tào vazia e plena como um cântaro.
Com o ébrio rumor do seu corpo unânime
dir-se-ia uma jarra de topázio ardente
sobre o redondo velame da pedra dos joelhos.
Num bosque de estátuas, entre tanta matéria adormecida,
desenrola os anéis de argila, de âmbar e de ouro
e vagarosamente junta as moedas de madeira lisa
num limbo de água verde. A seus pés uma pedra fendida
e um crânio de cavalo. O ritmo do pulso
mede a lentidão dos montes, a imensa torrente
azul do céu. Calada está com a terra como uma chama de água
na tranquila veemência do seu fundo solar.
A alta confiança, o poderio do ar,
a plena habitação do mundo,
são as linhas de força e graça do seu busto.
Obscenamente pura nas suas grandes fibras
vibrantes, a sua dádiva plena
é a paixão de um caminho errante e todavia imóvel.
Entre incandescentes muros, na espessura rutilante,
guarda inteira nas mãos uma corola de basalto.
Sustenta-se pela grave tensão dos músculos de ébano
e ilumina os desertos de cinza, os espelhos despovoados.
Um sopro de cores irrompe da sua boca redonda
e do umbigo solta-se-lhe uma translúcida serpente.
Os animais marinhos habitam os seus órgãos de verão.
Todo o mar está em festa nos seus flancos azuis
Como um tigre profundo. Tão lenta é a existência,
tão indolentemente lúcida
que as águas consteladas sob um bosque de nuvens
batem seu estrépito na página do ventre.
Tudo se equilibra na balança indolente das suas ancas
e o fundo ascende ao cimo, branquíssimo e doirado,
enquanto do alto tombam os girassóis vermelhos
que lhe inundam as espáduas e os cabelos.
No branco minarete em que repousa
vê o polvo azul que voa no meio dos pássaros
coberto de raízes e lâminas num torvelinho imóvel.
Está no centro do dia,desnuda, repousada,
e o seu nome é um relâmpago de água que ilumina
as obstinadas, desamparadas palavras soterradas.

Um comentário:

Giuliano Gimenez disse...

fala daniel, vamos tomar uma na vila bambu?