domingo, 7 de março de 2010

ESTE É O MEU CORPO: INCURSÕES NA NATUREZA HUMANA


Muitas mulheres fizeram nome na literatura portuguesa. A freira Mariana Alcoforado foi a primeira grande mulher a enfrentar a patriarcal sociedade portuguesa do século XVII, quando, provavelmente entre os anos de 1667 e 1668, escreveu cartas ao seu grande amor, Noel Bouton de Chamilly, das quais resultaram, mais tarde, As Cartas Portuguesas. O que muito impressiona nas cartas, além de sua escrita apurada, é sua coragem de se expor a um homem, sendo ela pertencente ao clero.

Mais recentemente também houve grande incursão feminina na literatura portuguesa. Nomes como Fernanda Botelho, Maria Manuela Couto Viana, Agustina Bessa-Luis, Teolinda Gersão, Lídia Jorge publicaram obras a partir dos anos 50. Lídia Jorge estreou na literatura no início dos anos 80, com O Dia dos Prodígios. No início dos anos 2000 surge uma nova e surpreendente revelação, Filipa Melo.

Filipa Melo nasceu na cidade de Cuíto, Angola, em 1972, mas vive em Portugal desde os dois anos de idade. Iniciou suas atividades como jornalista em 1992, aos vinte anos de idade, portanto, a prática da escrita está presente em sua vida desde muito cedo. Em 2001 Filipa Melo estreia na ficção com Este é o Meu Corpo, uma espécie de romance policial, mas este breve relato vai muito além desse rótulo.

Longe de estereótipos e clichês do gênero, Este é o Meu Corpo surpreende por sua narrativa ágil e sintaxe apurada, quase impecável. Trata-se de um romance polifônico, ou seja, com mais de um narrador. A trama inicia-se com o descobrimento de um corpo mutilado, com os órgãos e ossos para fora. O cadáver está literalmente virado do avesso. É já neste primeiro capítulo que o talento narrativo de Filipa Melo se faz evidente por suas descrições minuciosas de anatomia e de suas reflexões acerca do corpo humano, fazendo relação com sua existência em vida.

É interessante perceber aqui as mudanças do foco narrativo, pois as vozes da narrativa oscilam entre um narrador onisciente, em terceira pessoa, e outro auto-diegético (em primeira pessoa), que é a voz do médico legista (anônimo),que trabalha para descobrir a causa da morte da pessoa desconhecida e desfigurada. Conforme os capítulos vão se sucedendo, outros personagens vão aparecendo no romance e vão dando sentido ao trabalho minucioso do legista. Os personagens que aparecem são Miguel, colega de trabalho da pessoa morta; depois António Cernelha dos Santos, o mecânico que encontrou o corpo à beira de um rio e que não vê a filha há tempos; Alda, mulher amargurada que foi abandonada pelo marido, Jacinto, que mais tarde descobre-se que é o assassino da mulher encontrada morta. Portanto, todas essas cenas separadas acabam tendo uma relação, mesmo que mínima.

A única personagem que narra o que vê é o médico legista, e esse é um artifício muito inteligente usado por Filipa Melo, pois o médico trabalha duro para descobrir os fatos da morte de Eduarda. Durante a autópsia o legista corta, rasga, perfura e durante o tempo todo ele conversa com ela, tece comentários principalmente acerca da vida, da morte e das relações entre as pessoas. Percebe-se que de uma forma ou de outra todos os personagens são solitários, e a morte da jovem moça é o mote que Filipa Melo usou para abordar questões relevantes como a velhice e o fim inevitável a que todos nós estamos sujeitos.

O médico legista acaba descobrindo, sem dificuldades, que o cadáver é de uma mulher e que pouco antes de ser brutalmente assassinada, ela dera à luz um menino, e que só então, como na tragédia grega, à maneira de Sófocles, esse brutal acontecimento terá relações diretas com a pessoa que encontrou o cadáver, o mecânico António Cernelha.

Outro ponto interessante a ser abordado na novela é a relação entre o médico legista e o cadáver que corta e examina. Muitas vezes chega perto do erotismo, da paixão. O legista se apaixona não por quem "seu" cadáver podería ter sido, mas pela pessoa que teve a vida interrompida de forma tão chocante, e ele sente-se também responsável por "violar" seu corpo. O médico mantém um monólogo irredutível como se conversasse com o cadáver de Eduarda, e suas divagações não podem ser interrompidas, pois dispensara seu ajudante e está sozinho neste ambiente sombrio, escuro e uma chuva torrencial cai lá fora. A atmosfera é até certo ponto perturbadora, mas é só um artifício para criar uma tensão extra, como nos romances policiais.

Concentro-me. Dirijo o foco de luz para o rosto.O tempo começou a sua acção. A prolongada exposição à água acelerou o processo. Este corpo há muito que se preparou para partir.
- Espera, conta-me. Quem te deformou a expressão?
Percorre-me a mesma combinação de estranheza e familiaridade que ontem me perturbou o sono. Repulsa e atracção.
Continuo debruçado e sussurro:
- As próximas horas são só nossas. Não tenhas medo. Fala comigo (p.48).


Este fragmento mostra claramente que o médico legista dialoga com Eduarda e que o sentimento que o habita chega a ser admiração, desejo e em alguns momentos, com muito bom humor, ele é ambíguo.

Termino o exame externo. Observo pela última vez o que resta do teu rosto.
Prepara-te. Vou entrar dentro de ti (p.50)


Este é o Meu Corpo termina com o retorno de Jacinto, o assassino de Eduarda, para sua casa e para sua mulher, Alda. Não há solução de mistérios, perseguições e lugares comuns neste belo e breve romance. Filipa Melo ao invés de escolher um protagonista detetive, cria um médico legista, que estabelece uma relação muito mais profunda com a assassinada, tanto física quanto existencial. As incursões do legista pelas vísceras de Eduarda mostram uma história de amor às avessas, na qual um dos personagens está morto, e as atitudes de quem permaneceu vivo não toma conhecimento disso, e ama seus restos mortais como se se conhecessem há tempos.

A escolha de um legista como protagonista pode ser uma metáfora sobre as relações entre as pessoas, pois o médico "invade" o corpo de Eduarda, mas não obtém resposta, não obtém sinais porque ela está morta. Assim são as relações humanas, mortas, sem vida, sem comunicação entre os seres. É uma ideia do Existencialismo sartreano, buscar a comunhão entre os seres. E como no Existencialismo francês, essa busca pela comunicação não acontece, e os resultados são trágicos.

3 comentários:

Mariel Reis disse...

"Naquele dia, porque não estamos ainda no restaurante, tampouco cheguei até o lugar combinado, estava atrasado, minha reunião durou mais que o previsto. E ele não tem celular. Recusa-se, segundo me disse sua esposa. Não suporta o futuro. Quando ronda Curitiba persegue o passado, guiado por um roteiro invisível que não lhe permite nem olhar para os lados. Enxerga o lado oblíquo das ruas e das pessoas, me asseverou o meu amigo e cicerone Daniel Osiecki. O táxi se aproximava, meu amigo não me acompanharia, pedindo cautela ao abordá-lo, porque sempre faz cara de poucos amigos. É um modo de intimidar, sorri, quando estendo a mão."

Daniel, meu irmão e agora personagem, como sempre nível alto as coisas aqui. Abraço Mariel Reis

Daniel Osiecki disse...

Grande e querido amigo Mariel. Cara, virei personagem seu? Putz, pra mim é uma honra, honra mesmo. Obrigado pelo comentário e tudo de bom pra ti. Um forte abraço.

valeriajadenn disse...

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