segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Herdeiro do Talmude


Nessa semana que passou, peguei na biblioteca central da pucpr um livro do Isaac Bashevis Singer, Breve Sexta-Feira. Esse livro reune contos escritos em diferentes épocas da atividade intelectual de Singer, mas todos conduzem o leitor àquela atmosfera surrealista judaica da Polônia do início do século XX.

Singer é o que se convencionou chamar de herdeiro literário do Velho Testamento, pois seus contos apresentam um grau de concisão próximo aos textos da Torá, e mais, em muitas vezes com uma estrutura semelhante à fábula ou à parábola bíblica. Mas há de se levar em consideração também a relação de Singer com o judaísmo, que em alguns momentos de sua carreira literária seguiu um caminho mais culturtal do que religioso. Nessa questão o título do livro é muito significativo, Breve Sexta-Feira, que faz alusão ao Shabat.

No primeiro conto, "Taibele e seu Demônio", Singer conta a história de uma viúva que é fascinada pelas lendas e mitos hebraicos, e que acaba por se render aos desejos mundanos proporcionados por um mendigo que se passa pelo demônio Hurmizah, que aparecia em um livro que Taibele estava lendo. Como o mendigo só aparecia à noite, Taibele não podia ver seu rosto e também tinha medo de suas ameaças de ir para o inferno se contrariasse as vontades de Hurmizah. Esse é um conflito tipicamente judaico, que envolve um embate existencial muito relacionado à identidade e à cultura religiosa.

Há outros contos que merecem destaque, como "O Jejum", "Debaixo da faca" e "Sangue". Este último conta a dramática história de Reb Falik e Risha, que se casam, mas Falik é trinta anos mais velho que a esposa, fato esse que a leva buscar prazer carnal com outros homens. Risha acaba por relacionar-se com Reuben, um açougueiro que abatia animais de toda a aldeia.

Nesse conto a imagem da carne aparece como pecado, como desejo, pois depois de relacionar-se com Reuben, Risha fica obcecada por abater animais, por sangue; e como Reb Falik, seu marido, já estava inválido há muito tempo, passou a viver sua relação com Reuben abertamenmte. Essa relação era até certo ponto fetichista, masoquista, e durante suas relações, os dois amantes banhavam-se em sangue dos animais que abatiam. É uma metáfora sobre a dicotomia que existe na relação entre corpo e espírito, ou seja, ceticismo e religião. Embate esse, novamente, tipicamente judaico.

Como não poderia ser diferente, os personagens desse conto, e outros de Singer, são tomados por um sofrimento que não apresenta sua gênese claramente, e quando um membro da comunidade age de forma que destoa dos valores e conceitos estabelecidos principalmente pela religião, só há um caminho: a excomunhão, que é um preceito do Talmude. É o que acontece com Risha.

Nos contos de Isaac Singer vemos muitas situações semelhantes, mas de forma alguma o autor se repete. Seus enredos podem ser circulares, mas diferem na forma de contar, na linguagem. Singer estava tão ligado ao judaísmo (culturalmente)que, mesmo morando em Nova Iorque há muitos anos, ainda escrevia seus textos de ficção em íidiche. Fato que contribuiu muito para sua visão literária e para a formação de sua escrita sintética próxima às parábolas do Antigo Testamento. Um verdadeiro herdeiro de uma cultura milenar que tem como máxima a palavra escrita. Afinal, o legado principal dos hebreus à humanidade foi um livro. Nada mais significativo.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

Sob a égide do tempo



Raduan Nassar, autor singular, conseguiu atingir com Lavoura Arcaica o ponto máximo de sua produção e um dos momentos mais importantes na história da literatura brasileira. No romance nos deparamos com um enredo intrincado, denso e tenso, o que é fruto da própria linguagem utilizada por Nassar, muito próxima do que se convencionou chamar de “prosa poética”.

Raduan faz da confusão mental em que seu protagonista – narrador se encontra a construção de uma narração repleta de implicações formais prolixas e inteligentes, próprio dos grandes autores. Portanto, ao mesmo tempo em que nos deparamos com um enredo repleto por significados poéticos e metáforas, nos deparamos também com a construção de uma linguagem poética muito incomum, que não chega ao experimentalismo, mas sim a um estranhamento formal.

André, o protagonista – narrador, durante toda sua narrativa, não assume em sua fala um tom de diálogo, mas sim um tom de confissão em um emaranhado de palavras torpes e delírios. Muito de sua confusão deve-se ao fato da embriaguez em que ele se encontra, quando nos primeiros capítulos do romance André bebe vinho com seu irmão Pedro:

“É o meu delírio, Pedro, é o meu delírio, se você quer saber" (...) mas isso só foi um passar pela cabeça um tanto tumultuado que me fez virar o copo em dois goles rápidos, e eu que achava inútil dizer fosse o que fosse passei a ouvir. (p. 18)

Um fato importante em Lavoura Arcaica que temos de levar em consideração é o foco narrativo assumido por André, que está relacionado com o encadeamento dos tempos no romance, e que se apresentam sobrepostos. Em primeiro lugar há o tempo da narração, ou seja, André está longe do que narra, tempos depois, já amadurecido. Em segundo lugar há o tempo do reencontro com Pedro, seu irmão que vai buscá-lo no quarto de pensão, e que se evoca, na confissão do relato do narrador, o tempo anterior à partida e seus motivos. Porém, há de se levar em consideração aqui a existência de um terceiro tempo na narrativa, pois, as confissões de André ao seu irmão Pedro sobre os fatos ocorridos na fazenda antes de sua partida, são lembranças do André que está no quarto de pensão com seu irmão mais velho, ou do André distante no tempo e no espaço, o narrador? Essa ocorrência da sobreposição dos tempos é de extrema importância para a compreensão da narrativa.


Durante o relato de André, notamos que os espaços nos quais ele viveu, seja na fazenda, na pensão, na cidade, exerceram influência direta sobre ele. Primeiramente são os espaços da fazenda que André rememora, os quais representam para ele as origens, as raízes. A fazenda representa valores complexos e variados e seu abandono é um dos centros do enredo. Mas ao mesmo tempo em que a fazenda representa suas origens, representa também o impacto dos valores do pai, o espaço da ordem, da censura, do trabalho.

Os espaços internos da fazenda, como o quarto, a cozinha, a igreja, estão relacionados ao que representam a mãe e Ana, um misto de erotismo e espiritualidade. São espaços de repressão onde André encontra o lado oculto da família, o lado escuro, que se guarda como pecado e perversão. Outro espaço interno importante é o da sala de jantar, com sua mesa comparada a uma árvore de onde surgissem ramos sãos, à direita do patriarca, e ramos doentios, à esquerda:

O galho da direita era um desenvolvimento espontâneo do tronco, desde as raízes; já o da esquerda trazia o estigma de uma cicatriz, como se a mãe, que era por onde começava o segundo galho, fosse uma anomalia, uma protuberância mórbida, um enxerto junto ao tronco talvez funesto, pela carga de afeto... (p. 156 -57)

No enredo percebemos uma clara alusão à parábola do filho pródigo e a algumas sentenças do Alcorão (“Vos são interditadas: vossas mães, vossas filhas, vossas irmãs”). Porém, o comportamento de André é uma perversão da parábola bíblica levada a um extremo. Nas confusas palavras de André há a tentativa de perversão do discurso do pai e de seu significado e a isso se acrescenta a relação edipiana com a mãe.

Indo contra a prédica do pai e do Alcorão, André mantém uma relação incestuosa com Ana, símbolo do mistério e de uma descoberta trágica. Há um impasse em relação à Ana que se estabelece em virtude do impossível de qualquer defesa desse amor (“que culpa temos nós desse fruto da infância?”) o que coloca o tema da solidão do indivíduo em face do seu destino, sempre maior ou mais forte do que o desejo pessoal.

Lavoura Arcaica é um romance denso, pungente e talvez possamos classificá-lo como um romance ensaio. Algo interessante a observar nesse livro, é que ele narra um drama universal e atemporal, ou seja, o drama de André constitui-se perdido no tempo e no espaço. O tempo nessa obra, a concepção de tempo (ou de tempos), é um fator de extrema importância e significado, o que torna a narrativa, conforme seu desenvolvimento, mais introspectiva e poética através da construção de uma linguagem incrivelmente bem elaborada e de um universo trágico de estranha beleza.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

O flautista


Caminhava sempre sozinho, as janelas estavam sempre fechadas. Cada volta que a chave dava na porta era um aperto em seu coração. O seu caminhar na rua escura era torpe, inseguro. Não sabia em que se apoiar e frequentemente tinha a sensação de que estava caindo.

Sentia-se seguro quando seus deuses estavam por perto, quando através das brumas intermináveis eles surgiam e o levavam para lugares distantes. Sua própria vida era como uma masmorra no alto de uma colina que desaparecia no horizonte, e seus desejos estavam aprisionados em calabouços obscuros e gelados.

Não tentava abrir mais seus olhos, pois a escuridão o vencia com facilidade. O transportava de forma rápida e ágil através de sentidos e olhares assustados. Suas mãos pareciam sempre atadas, suas pernas há tempos que não o obedeciam, seus olhos sempre a enxergar dor e prazer como sensações parelhas.

Passava por um imenso corredor feito de pedras escuras, o chão estava úmido devido às chuvas de junho. Vários retratos antigos o olhavam com lágrimas nos olhos e sussurravam entre si. Conforme ele ia passando pelas velhas molduras seu rosto ficava cada vez mais perdido através da intensa neblina que dominava todo corredor. A cada passo que dava os archotes que iluminavam o corredor do calabouço se apagavam. Não se assustava, nem se importava, apenas caminhava em direção de seus deuses. Eram deuses terríveis, intolerantes, nada misericordiosos. Com desejo e com devoção chegava ao altar onde faria a oferenda. Entoava cantos e dedicava olhares aflitos que clamavam por bênção.

Esse santo desejo era seu ópio, era sua vida. Às vezes sentia-se o único ser lúcido sobre a face da terra, mesmo sendo o único a andar na contramão. O mundo lhe parecia... O que lhe parecia o mundo? Era apenas uma vitrine repleta de ilusão diante de olhares sedentos por agonia. Não era ele que pensava dessa forma, ele nem sabia em que pensava. Mas tinha essa imagem apocalíptica em algum lugar de seu inconsciente. Ainda não havia descoberto esses conceitos e valores, mas os sentia, de alguma forma os sentia.

Em igrejas, em tabernas, em prostíbulos, em casas, enfim, por todos os lugares já andara, porém em nenhum deles sentiu-se livre, em nenhum destes lugares sentiu-se como um ser capaz de raciocinar sozinho, porque nunca teve em sua mente essas idéias de autonomia.


Talvez todas suas andanças pudessem resultar em uma segunda versão da obra do velho Burton. Anatomia da Melancolia? Ele nunca havia lido o Burton, mas era como se já tivesse. Sem compreender nada do que se passava em sua mente, com as mãos abertas bateu levemente em seu rosto magro para recuperar um pouco de insanidade. Levantou do banco da praça e começou sua caminhada rumo à loucura tão esperada.

Como o secular flautista guiou milhares de crianças rumo ao mar, ele guiou milhares de vultos rumo aos imensos portões da insanidade. Gritou até ser ouvido. Os portões se abriram, entregou-se à sua lucidez, fechou sua porta e jogou a chave fora. Havia encontrado seu paraíso. Vendo o reflexo de seus olhos aflitos na água em que bebia, deitou no chão e começou a entoar uma antiga canção. Vários vultos que o cercavam começaram a caminhar em direção do mar.








quinta-feira, 23 de agosto de 2007

Cristovão Tezza e seu Filho Eterno: romance do ano?


No último dia 21, no restaurante Beto Batata, em Curitiba, Cristovão Tezza lançou seu novo romance, intitulado O Filho Eterno (Record, 222 p.). Uma pessoa fantástica esse Tezza. Muitos críticos estão jurando que este será o livro do ano. Forte candidato a ganhar o Jabuti 2007.


Miguel Sanches Neto confirma essa prédica dizendo que "com O Filho Eterno, Cristovão Tezza renuncia às preferências veladas e trata de forma direta da própria vida, inscrevendo abertamente a sua história num romance fadado ao sucesso".


O fato é que Tezza é um grande escritor, como já ficou provado em romances como Uma Noite em Curitiba, A Suavidade do Vento, Breve Espaço entre cor e sombra etc. É um autor que foi superando seu próprio estilo ao longo dos anos, de livro para livro. E Cristovão sendo um acadêmico, o interessante é que ele não se tornou um escritor acadêmico, pseudo intelectual. Como já afirmou o próprio escritor, "não tem nada pior que uma tese escrita com características de ficção ou um romance escrito com carcterísticas de tese".


De fato. Esperemos agora mais um romance denso que, semelhante a outros do autor, tende mais para o ensaio ficcional.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Raul Brandão - Entre a psicose e o Decadentismo


Raul Brandão foi um autor que trilhou caminhos diversos dentro da literatura portuguesa. Começou como contista com o volume Impressões e Paisagens, ainda ligado ao Naturalismo. nessa fase inicial Raul Brandão tinha certo interesse nas temáticas sociais, na vida das pessoas do povo.


As vertentes artísticas e literárias em ascensão no final do século XIX, principalmente o Decadentismo europeu, influenciaram diretamente Raul Brandão, e isso aparece com mais clareza em suas narrativas longas. O melhor de sua obra constitui-se na trilogia A Farsa (1903), Os Pobres (1906) e Húmus (1917), este último é considerado seu melhor romance.


Húmus é um romance que não segue um enredo lógico, linear, apesar da forma de diário. Esse é um paradoxo do texto, porque ao mesmo tempo em que o autor divide seu romance em capítulos e os capítulos em sub-capítulos com data, a narrativa é confusa, desconexa, neurótica, delirante e onírica.


O romance é composto por personagens fantasmagóricos que o leitor não sabe se de fato existem ou não. Os personagens são mais espectros do que pessoas reais. O que deve-se levar mais em consideração em um romance como Húmus é a linguagem. A composição da linguagem nesse texto é riquíssima, fato que faz de Húmus um texto entre o romance e o poema em prosa, ou um romance de prosa poética.


O que fica evidente nesse livro de Raul Brandão é a predominante presença de um sentimento trágico e de que a vida nada significa. Fato que contribui para a confusão mental e linguística do narrador. Nota-se uma atmosfera trágica onde o mundo é composto apenas por gemidos horrendos, por dor e por incapacidade de mudar o presente.


Um ponto relevante na composição de Húmus é a evidente fuga da realidade através do sonho. Em determinada altura da narrativa, o narrador propõe ao seu interlocutor seguir sonhando, e assim encontrar sua redenção, ou voltar à vida real "e seguir o estúpido rebanho" ( p.66).


Essa temática da fuga é rica e constante na obra de Raul Brandão, o que muitas vezes contribui para a narrativa complexa e estertorosa, repleta por seres decadentes oníricos. Mas aí está a força de sua escrita, a importância de sua linguagem psicótica e doentia, que chega ao seu momento de epifania através do nulo, da extinção.





sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Ecos


A luz ainda estava acesa. Ele podia ver por baixo da porta. A luz ainda estava acesa. Naquela casa que dormia seu coração agitado pulsava, era uma espécie de força propulsora que lhe dominava, mas por alguma razão o fazia parar diante da porta fechada. Havia uma batalha terrível com sua própria mão, que ia em direção da porta, mas sempre recuava.

Aquela luz era algum vestígio de esperança? Todas as noites esta pergunta fazia seus olhos arderem e seu corpo se revirar na cama em busca de paz. Os sonhos e os ideais eram agora retratos disformes em preto e branco pendurados em uma parede do porão escuro. Aquele doce som de carícias noturnas eram apenas ecos distantes e soturnos que o angustiavam.

Os passos que vinham do quarto também o inquietavam, talvez fossem piores do que a luz acesa. E se a luz definitivamente se apagasse? E se a luz se apagasse para sempre? Sua caminhada pelo corredor era tensa, seus passos pesados. E se a luz se apagasse? Era tomado por um sentimento de vazio, de extinção, de nada, de nulo. Ela também caminhava dentro do quarto, não dormia. Ambos sabiam da situação e tinham noção de sua gravidade. Bater na porta? Abrir a porta? Cessar a caminhada e apagar a luz? Não havia coragem. A agonia era imensa, era intensa.

Entre um cigarro e outro, imerso na escuridão, pensava em algum modo de chegar a ela, em algum modo de dominar seus sentidos e parar aquela busca sinistra por algo que não sabia o que era. Os ruídos eram difíceis de ouvir, porém quando ouvidos soavam como trovões em tempestades agonizantes. Na caminhada desenfreada através do corredor sombrio suas mãos tremiam.

Ainda podia ouvir os passos que vinham do quarto, sempre com a luz acesa. Ao mesmo tempo em que pareciam vestígios de esperança pareciam também um caminho sem volta. Não havia repouso para suas inquietações.

Caminhou até o fim do corredor e dirigiu-se ao bar. Pegou uma garrafa de gim e preparou uma dose que serviria como um escudo de proteção. No andar de cima as crianças dormiam, o menino e a menina. Não sabiam o que acontecia no andar de baixo. Não sabiam da angústia que se apoderara de todo seu pensamento e nem de suas caminhadas solitárias, noite após noite, pelo corredor mergulhado em trevas.

De repente os passos de dentro do quarto cessaram. Ele tomou todo o gim e com muito cuidado se aproximou da porta. Encostou seu ouvido direito nesta porta que lhe parecia uma muralha surreal e, com um pavor que lhe dominara por inteiro, vagarosamente, com os olhos fechados foi baixando a cabeça para olhar a luz que vinha pela fresta da porta. Havia chegado o momento, pensou.

Abriu os olhos. A luz havia se apagado.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Oficina de Poesia II - O Eu - lírico e a figura do poeta: construção e desconstrução em Fernando Pessoa e David Mourão-Ferreira


David Mourão-Ferreira

Escritor e professor universitário português, natural de Lisboa. Licenciou-se em Filologia Românica em 1951. Foi professor do ensino técnico e do ensino liceal e, em 1957, iniciou a sua carreira de professor universitário na Faculdade de Letras de Lisboa.

A sua carreira literária teve início em 1945, com a publicação de alguns poemas na revista Seara Nova. Três anos mais tarde, ingressou no Teatro-Estúdio do Salitre e no Teatro da Rua da Fé. Publicou as peças Isolda (1948), Contrabando (1950) e O Irmão (1965). Em 1950, foi um dos co-fundadores da revista literária Távola Redonda, que se assumiu como veículo de uma alternativa à literatura empenhada, de realismo social, que então dominava o panorama cultural português, defendendo uma arte autónoma.

Deixou ainda traduções e uma gravação discográfica de poemas seus intitulada «Um Monumento de Palavras» (1996). Alguns dos seus textos foram adaptados à televisão e ao cinema, como, por exemplo, Aos Costumes Disse Nada, em que se baseou José Fonseca e Costa para filmar, em 1983, «Sem Sombra de Pecado». David Mourão-Ferreira foi ainda autor de poemas para fados, muitos deles celebrizados por Amália Rodrigues, tal como «Madrugada de Alfama». Recebeu, em 1996, o Prémio de Consagração de Carreira da Sociedade Portuguesa de Autores. David Mourão-Ferreira morreu em 1996, em Lisboa.

Revista Távola Redonda


Nos primeiros dias de fevereiro de 1950, com a data de 15 de janeiro, chegava ao público o fascículo 1 da revista Távola Redonda e que trazia como subtítulo a designção de "folhas de poesia". Seus diretores e editores eram António Manuel Couto Viana, David Mourão-Ferreira e Luiz de Macedo.

A nova revista literária que surgia, reinaugurava um estilo de publicações ausentes há oito anos, já que a última deste tipo, os Cadernos de Poesia, não vinha sendo editada desde 1942.

Os fascículos traziam as páginas que serviriam de capa já com poemas impressos. Todas as suas folhas eram constituídas com o mesmo papel e com a mesma cor para cada fascículo. Em relação à disposição da matéria publicada, a organização era da seguinte forma: nas primeiras páginas, publicava-se poesia; no meio ou final, estudos teóricos ou críticos.

Fica claro, segundo pensamento dos poetas da revista, que em primeiro lugar deve-se dar atenção à poesia, mais especificamente, a um tipo de poesia em que a imaginação deve ter papel preponderante. Poesia, que deve impor-se ao poeta como uma necessidade vital, poesia que deve ser feita principalmente pelos jovens, mas que deve reconhecer nos mais velhos um exemplo a seguir. Uma poesia lírica, e que, por ser pessoal, deve opor-se à tendência social de expressão do coletivo.

Portanto, a revista teve uma missão básica: acolher poetas novos, dando-lhes uma oportunidade e um lugar para publicarem suas produções. Uma das metas principais da revista é a revalorização do lirismo.

Decorrente de uma tradição lírica, inclusive encampada em termos teóricos pela revista, Távola Redonda apresenta, no conjunto de sua produção poética, uma poesia voltada para o próprio "eu" do poeta. Portanto, uma poesia pessoal, característica fundamental do lirismo.

A revista durou quatro anos, de janeiro de 1950 a julho de 1954. Távola Redonda, apresentada como "folhas de poesia", teve sempre uma preocupação básica: "ser um órgão vivo de Poesia, um testemunho da Poesia de seu tempo". Para isso, buscou nos jovens poetas a sua principal fonte de colaboração.

Avaliação crítica

A poesia de David Mourão-Ferreira pode ser dividida em três vertentes básicas: a de lírica amorosa, a de erotismo lírico e a poesia de revalorização do mito. O mito aparece na poesia de David Mourão-Ferreira, como por exemplo, no poema "Inscrição sobre as Ondas", em que um deus anuncia ao poeta que não irá só na "secreta viagem", embora a desejada companhia tenha ficado apenas na promessa segredada pelo deus.

No poema "A secreta Viagem", o mito está presente, embora de uma forma velada, metafórica. Quando Mourão-Ferreira escreve "figuras de legenda...Olhos vagos, perdidos.../ Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...", podemos ter em mente a própria figura do poeta, com seus "olhos vagos e perdidos", do eu lírico e a do próprio poema, do labor poético, quando diz que "por entre nossas mãos, o verde mar escoa...".


Em "Morada", também percebemos a presença do mito. Há referências claras ao Olimpo e ao Monte Parnaso: "era a colina grega! / Em sonhos, a colina / ...Mas a vida nem chega / a não nos dar razão... / Por um tímido preço / um deus nos apontou / na Morte, o endereço...". Podemos perceber as relações com o mito, também, através de seres ou entidades como Vida e Morte, forças antagônicas, grafadas com letra maiúscula. Esse fato é recorrente em muitos de seus poemas, como por exemplo, em "A Secreta Viagem", onde aparece a palavra Mar, com letra maiúscula. O que é comum também em seus poemas, é o constante aparecimento da Lua e do Sol, como deuses, grafados com letras maiúsculas, e novamente temos as forças opostas, antagônicas.


Em David Mourão-Ferreira, o erotismo está mais presente nos poemas "Outono", "Nocturno" e "Espionagem". O termo seio é frequente na poesia de Mourão-Ferreira. No poema "Nocturno" constitui um motivo central. É à sua volta, sob as diferentes formas sinônimas espalhadas por cada uma das estrofes - seio, busto, colo, peito -, que o poema, e o sensualismo, se desenvolvem. Na própria forma que sugere um círculo, por iniciar e terminar com o mesmo verso, apenas ligeiramente modificado, está a imagem poética do "desenho redondo do teu seio" do primeiro verso, ou do "desenho redondo do teu peito" do último.


Alguns dos motivos líricos mais comuns aparecem no poema "A Praia do Encontro", ou seja, o desejo de fuga, o ensinamento que leva o poeta a uma atitude de fechar-se em si próprio, o consequente alheamento, também resultado de uma desilusão. Há de se levar em consideração a consciência romântica do sentir-se inútil por haver falhado no amor: "Esta imaginação de sal e duna,/ inquieta e movediça como areia,/ ergue, isolada, a praia, mais a espuma / que sereia nenhuma / saboreia...". E parece que há a aceitação mórbida de um castigo, de uma espécie de auto-flagelo, quando o poeta diz que "ali estarei, à tua espera, morto, / ou vivo em minha morte / transitória...".


Essa temática do sofrimento, da auto-punição por ter falhado no amor, indica a tendência do poema, lamentosa e impregnada de uma melancolia e de um sentimento de solidão que se reflete, principalmente na primeira e na terceira estrofes.


No poema "Outono", há uma grande carga de erotismo e uma busca da fuga do sonho. Há uma motivação do erotismo que flui de uma temática em que o amor e a posse estão sempre presentes, como forças similares. Há uma tentativa, por parte do poeta, como foi dito acima, de não permanecer em estado onírico, em buscar sua fuga do sonho, do torpor, porém, primeiramente não o consegue: "seria bom dormir assim,/ ao deus-dará, como eu desejo.../ mas o teu seio é que não quis:/ tremeu demais sob o meu rosto.../ agora nu, será feliz,/ sob o afago do sol posto...". Podemos notar que só há prazer quando o sol se põe, ou seja, uma visão poética um tanto romântica.


Notemos que, novamente, um ser inanimado aparece grafado com letra maiúscula, "Outono", técnica recorrente na poética de David Mourão-Ferreira, e que nos remete à idéia de que "Outono" aqui, pode ser entendido como sonho. O poeta se pergunta se "seria Outono aquele dia", ou seja, ele não sabe se o fato descrito ocorreu no plano contingente (da realidade) ou no plano transcendente (da memória). Porém nos dois últimos versos, há a comprovação de que o ato amoroso, o toque dos seios em seu rosto, dos afagos, enfim, ocorreram no plano real. Houve predomínio da contingência sob a transcendência.


Em "Espionagem" a temática do erotismo está presente novamente. Porém aqui, sob uma forma mais bruta e intensa do que em "Outono". O poeta refere-se a termos como "mórbido apetite", "crueldade", e que nos remete a uma imagem de cópula, de um ato um tanto quanto selvagem, e até, se pensarmos na primeira estrofe, sadismo: "O mórbido apetite - a crueldade/ que cada um dentro de si trazia-/ atingiu, nesse dia,/ a saciedade...".

Nessa primeira estrofe podemos perceber que as pessoas só chegam à saciedade através da dor, que consequentemente lhes traz prazer. O poeta diz que cada um trazia dentro de si a crueldade, o mórbido apetite e que nesse dia sentiram-se satisfeitos, atingiram a saciedade, o orgasmo.

Na última estrofe do poema, temos a imagem de um casal, "anjos do inferno" extasiados após o ato sexual. Note-se aqui a caracterização do espaço, pois o poeta faz menção a "um espelho , no quarto", e que nos remete, claramente, a imagem de um quarto de motel.

Podemos perceber também a presença de uma profanação do sexo, ou seja, o ato sexual é visto aqui como um ato instintivo e não idealizado, como era comum no Romantismo.


Na poesia de David Mourão-Ferreira podemos levar em consideração a poesia "fingida", e aqui fingida está ligada a um conceito de poesia pensada, intelectualizada. Portanto, uma poesia correlacionada, por oposição, à poesia "sincera". Lembremos de Fernando Pessoa em "Autopsicografia".

A última estrofe do poema "Poesia de amor" exemplifica a consciência do fingimento como um problema de teorização poética. Por inspiração da amada, o poeta cantou às flores do pinho e nas margens das ribeiras, mas quando tomará conhecimento que o motivo foi só ela para "essas falsas canções, tão verdadeiras"?

O poeta diz "falsas canções", porque tem consciência de que são fingidas, criadas pelo "eu" lírico, e que, portanto, constituem ficção. E diz "tão verdadeiras"porque assim as considera vivencialmente, o poeta as considera verdadeiras, o homem, o autor. Podemos fazer ainda uma outra leitura do poema. Se as canções são falsas porque são fingidas, o motivo dessas canções é, porém, verdadeiro. E este motivo verdadeiro é o amor que o poeta dedica à inspiradora do poema.

POEMAS ANALISADOS NESTE ESTUDO:

Inscrição sobre as ondas

Mal fora iniciada a secreta viagem
um deus me segredou que eu não iria só.
Por isso a cada vulto os sentidos reagem,
supondo ser a luz que deus me segredou.

Secreta Viagem

barco sem ninguém ,anónimo e vazio,
ficámos nós os dois ,parados ,de mão dada ...
Como podem só os dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!

Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais,e de maneira, à proa...
Que figuras de lenda!Olhos vagos,perdidos...
Por entre nossas mâos , o verde mar se escoa...

Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos,sem ver,a longínqua miragem...
Aonde iremos ter?- Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!

Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa ,passa...alheio aos meus sentidos.
-Desfeitos num rochedo ou salvos na ensseada,
a eternidade é nossa ,em madeira esculpidos!

Morada

Era a colina grega!
(Em sonhos, a colina...)
Que ninguém a defina!
- Era a colina grega...
Em sonhos, a colina.

Mas a Vida nem chega
a não nos dar razão:
autoritária e cega,
leva a colina grega
em outra direcção.

(Por um tímido preço,
um deus nos apontou,
na Morte, o endereço
de quem não se encontrou.)

Outono

Mas quem diria ser Outono
se tu e eu estávamos lá?
(Tínhamos sono...Tanto sono!
É bom dormir ao deus-dará...)

E sobre o banco do jardim,
ante a cidade, o cais e o Tejo,
seria bom dormir assim,
ao deus-dará, como eu desejo...

Mas o teu seio é que não quis:
tremeu de mais sob o meu rosto...
Agora, nu, será feliz,
sob o afago do sol-posto...

Seria Outono aquele dia,
nesse jardim, doce e tranquilo...?
Seria Outono...
Mas havia
todo o teu corpo a desmenti-lo.

Noturno

O desenho redondo do teu seio
Tornava-te mais cálida, mais nua
Quando eu pensava nele...Imaginei-o,
À beira-mar, de noite, havendo lua...

Talvez a espuma, vindo, conseguisse
Ornar-te o busto de uma renda leve
E a lua, ao ver-te nua, descobrisse,
Em ti, a branca irmã que nunca teve...

Pelo que no teu colo há de suspenso,
Te supunham as ondas uma delas...
Todo o teu corpo, iluminado, tenso,
Era um convite lúcido às estrelas....

Imaginei-te assim á beira-mar,
Só porque o nosso quarto era tão estreito...
- E, sonolento, deixo-me afogar
No desenho redondo do teu peito...

Espionagem

O mórbido apetite - a crueldade
que cada um dentro de si trazia -
atingiu, nesse dia,
a saciedade.
Baixo, brilhou, com sua luz rasteira,
um sol polar, de pálpebra pesada
- na lâmpada velada
à cabeceira.

O leito foi um estreito redondel;
o amor, um vidro sob um diamante:
pois tudo foi vibrante
e foi cruel.

O desgraçado par que te supunhas
bem ao abrigo de qualquer olhar,
num seguro lugar,
sem testemunhas!

Mas um espelho, no quarto, transmitia
aos anjos do Inferno, extasiados,
os férteis resultados
desse dia.

Praia do Encontro

Esta imaginação de sal e duna,
inquieta e movediça como areia,
ergue, isolada, a praia, mais a espuma
que sereia nenhuma
saboreia...

Quisesses tomar tu este veleiro,
que em secreto estaleiro construí,
sem velas, sem cordame, sem madeira
- mas branco, e todo inteiro
para ti...

Brilha uma luz de morte sobre o porto
saido mesmo agora da memória...
Ali estarei, à tua espera, morto,
ou vivo em minha morte
transitória...

Combinado. Que eu juro não faltar!
Contrário de Tristão, renascerei,
se pressentir, aérea, sobre o mar,
a sombra singular
do barco que te dei.

Poesia de Amor

Vieram aves negras em teu nome,
secas folhas de plátano e de tília...
Amargamente, a fonte segredou-me
tudo quanto eu sabia
da sorte de Marília;
e que Dirceu
poderei ser eu,
Ausente embora, continuo a endereçar-te mil endechas.
Não sei mais nada: sei amor. Assim destruo,
pela canção, a doentia
coloração das minhas queixas.
Bárbara escrava?
Que me importava!
Além do amor, o meu amor quer melodia.

Cantei às flores de pinho, verde e vivo;
cantei nas margens verdes das ribeiras.
- Quando hás-de ver que foste só motivo
para falsas canções,
tão verdadeiras?

Referências

BUENO, Jayme F. (org.) Literatura Portuguesa: O Modernismo, 1ª Fase. Curitiba:EDUCA, 1985.
BUENO, Jayme F. Távola Redonda: uma experiência lírica. Curitiba: EDUCA, 1983.

GARCEZ, Maria Helena N. Trilhas em Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. São Paulo: Moraes, 1989.

MOISÉS, Carlos Felipe. Poesia não é difícil. Porto Alegre: Arte e Ofícios, 1996.

MOISÉS, Massaud. A Literatura Portuguesa. 8ª ed. São Paulo: Cultrix, 1970.

MOURÃO-FERREIRA, David. Obra Poética. 1º volume. Lisboa: Bertrand, 1980.

MOURÃO-FERREIRA, David. Obra Poética. 2º volume. Lisboa: Bertrand, 1980.

PAIXÃO, Fernando. O que é Poesia. 6ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.

PESSOA, Fernando. Poemas Escolhidos. São Paulo: Klick, 1997.