quinta-feira, 26 de julho de 2007

A Melancolia na literatura brasileira:Moacyr Scliar e o caráter judaico




Esse artigo eu escrevi em 2005 para ser apresentado no VI Fórum de Letras da PUCPR. Nesse texto eu analiso o romance Na Noite do ventre...o diamante, de Moacyr Scliar.Minha análise busca a relação que há entre o conceito de melancolia e o caráter judaico, a condição judaica.

Utilizei como principais obras de apoio os livros Saturno nos Trópicos, de Scliar, e O Judaísmo Vivo de Michael Asheri. Outra obra fundamental para a escrita de meu estudo foi o Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano, tradução de Alfredo Bosi. Estas e outras obras de apoio constam no final do artigo.

A Melancolia na literatura brasileira:Moacyr Scliar e o caráter judaico

O que é melancolia?

Segundo Moacyr Scliar, melancolia às vezes pode ser considerada doença e às vezes não. A melancolia deve ser diferenciada da tristeza, que pode ser considerada uma reação até certo ponto normal aos embates da existência. Porém a melancolia não é o banal tédio, que nos remete ao real.

Em seu livro Saturno nos Trópicos, Scliar defende a idéia de que a melancolia é como a depressão, uma doença, mas não só uma doença, é uma experiência existencial. Tristeza, sim, porém tristeza duradoura, e talvez até tédio.

A melancolia (conceito) aparece no ocidente depois de uma fase negra na história da humanidade, era a Peste Negra, como relata Scliar em Saturno nos Trópicos:

Em outubro de 1347 uma frota genovesa vinda do Oriente entrou no porto de Messina, na Sicília. Não foi uma chegada festiva, antes um tétrico espetáculo: quase todos os marinheiros haviam morrido ou estavam agonizantes. De peste.

A partir desse momento histórico se começa a falar, novamente, sobre melancolia, pois os gregos antigos já falavam sobre o assunto. Podemos dizer que a Peste Negra causou o que Scliar chama de Renascimento da melancolia.

Em um período de transição da Idade Média para o Renascimento, mais precisamente no início do século XVII, em 1631, em Londres, é lançado o livro The Anatomy of Melancholy (Anatomia da Melancolia), de Robert Burton. Neste livro, lançado em vários volumes, Burton tece um estudo médico e filosófico sobre a melancolia em mais de novecentas páginas.

Desde a Idade Média já se fazia associações entre a melancolia e a Bile Negra (secreção do pâncreas). A bile é pesada, espessa, tende a “descer”. No Renascimento, um dos tratamentos para a “cura” da melancolia era a sangria, ou fazer com que o “enfermo” bebesse grandes doses de vinho (alusão ao sangue), porque, enquanto a bile é negra e tende a “descer”, o sangue, que é mais vivo, mais enérgico, tende a “subir”.
Metaforicamente falando, melancolia é frieza, secura, enquanto alegria é úmida e quente.

A melancolia no caráter judaico

O povo judeu tem uma história repleta por peculiaridades, como por exemplo, o humor, que se caracteriza por ser um humor melancólico, até certo ponto amargo. É um grupo que possui uma trajetória histórica indiscutivelmente marcada pela tragédia, pelo sofrimento.

Levando em consideração os conceitos de melancolia discutidos por Scliar em Saturno nos Trópicos, podemos ter em mente, que no caso do judaísmo a melancolia é uma espécie de contágio psíquico, e domina o clima de opinião e a conjuntura emocional desse grupo.

Quando falamos em contágio psíquico, podemos levar em consideração as diversas influências que certas pessoas exercem sobre outras (aqui nos referimos aos judeus), pois, pessoas, histórias, lendas (a Bíblia), podem se tornar conceitos e princípios a serem seguidos e a serem incorporados ao caráter e à personalidade de determinado indivíduo.

O principal objetivo que faz com que indivíduos judeus adotem essa típica personalidade histórica, ou seja, o caráter melancólico, o humor amargo, que não pretende levar as pessoas às gargalhadas, mas no máximo a um modesto sorriso, é a tradição. O conceito de amargura, de tragicidade na história semita, está tão intrínseco no caráter judeu, na condição judaica, que o indivíduo judeu já cresce com esses valores em seu caráter sem que ele saiba. Quando ele percebe, ou seja, quando ele depara-se com sua condição, um forte sentimento de abandono e uma necessidade de questionar fervilha em seu ser. O indivíduo judeu torna-se muito perturbado por conseqüência de uma inquietude que lhe é peculiar: quando se depara com a aceitação ou não de sua identidade. Esse é tema central de muitas obras de Scliar, dentre as quais O Centauro no Jardim e Na Noite do Ventre, O Diamante.

A melancolia presente em Na Noite do Ventre, O Diamante

O romance Na Noite do Ventre, O Diamante, apresenta dois percursos narrativos bem claros. O primeiro segue até a metade do romance, descreve a trajetória do diamante, que é a linha condutora da narrativa, tirado das entranhas de Minas Gerais, passando pelos Países Baixos até chegar ao Leste Europeu. O segundo, centrado na figura do judeu Guedali, conta como o diamante foi parar em seu ventre e, a partir daí, como o incidente marca a vida do personagem, que emigra com a família da Rússia para o Brasil.

Várias figuras históricas são retratadas e mencionadas no romance, como o padre Vieira e o revolucionário Trotsky, porém merece destaque a figura do filósofo Spinoza.

Técnica narrativa

Neste romance, não diferente de vários outros de Scliar, notamos uma narrativa ágil, precisa, estruturada sobre cortes no tempo.

O filósofo Spinoza, como fica bem caracterizado no romance, além de filósofo era polidor de lentes, o que nos leva a pensar sobre suas idéias: “Dentro de cada complexa, obscura proposição, parece haver outra, ainda mais complexa e obscura. Algo semelhante aos segmentos da luneta que se encaixam uns nos outros”.

Pode ser uma alusão à técnica narrativa de Scliar, neste livro. O autor não só encaixa um fragmento no outro, como também, por meio desse percurso chega mais perto (como a luneta) de seu assunto.

O fio da narração desenvolve uma trajetória intrincada, resultando num painel cheio de implicações formais, que só é apreendido seguindo-se cada um de seus traços.

O teor judaico na obra

O protagonista de Na Noite do Ventre, O Diamante, Guedali, é uma figura singular, tão peculiar quanto o meio ao qual pertence, que fica bem claro, com o qual vive uma relação de amor e ódio, de aceitação e repulsa.

Guedali é um imigrante judeu, que para sair da Rússia com sua família às vésperas da Revolução Russa, é forçado pelo pai a engolir o diamante da família, o único bem de valor que sua família possuía, e que exercia uma influência imaginária incrível em sua mãe nas noites do Shabat.

Como não podia ser diferente, o resultado é trágico, melancólico. O diamante fica preso no intestino de Guedali, como uma herança que lhe é deixada à força. Uma clara alusão à condição judaica, à aceitação da identidade judaica que é um fardo pesado. O fato de ser judeu é inegável, imutável, e consequentemente trágico, amargo e desesperador. É uma herança com a qual Guedali não sabe como conviver, como lutar, como aceitar (ou não aceitar).

O diamante, que está alojado em seu intestino, pode ser entendido como a condição judaica que está inegavelmente presente em seu ser, e a não aceitação é uma conseqüência disso. Porém, o diamante é uma preciosidade, logo, podemos entender que essa herança que não foi deixada, mas imposta, ao mesmo tempo em que é questionada, é refletida. A preciosidade dentro do ventre pode ser entendida como a aceitação de sua condição. Scliar nos leva a um sentimento ambíguo e complexo, como é característico de suas idéias em suas narrativas, já que está inserido neste peculiar, dramático e milenar meio judaico. Não religioso e sim cultural.

Igualmente em outro romance de Moacyr Scliar, O Centauro no Jardim, a herança é presa ao corpo do protagonista como se por um acidente genético. Neste romance, o herói nasce meio cavalo meio homem, e em Na Noite do Ventre, O Diamante com uma espécie de bolsa intestino. Ambos chamam-se Guedali e ambos foram escolhidos, porém nenhum dos dois gostaria de ter sido.

Referências

Abbagnano, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

Asheri, Michael. O Judaísmo Vivo: as tradições e as leis dos judeus praticantes. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1995.

Chouraqui, André. História do Judaísmo. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1963.

Gazeta do Povo – Caderno G - Domingo, 15 de maio de 2005.

Gazeta do Povo – Caderno G - Sábado, 9 de julho de 2005.

Scliar, Moacyr. A Condição Judaica; das tábuas da lei à mesa da cozinha. Porto Alegre: L&PM, 1985.

Scliar, Moacyr. Saturno nos Trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

Scliar, Moacyr. O Centauro no Jardim. 10 ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

Scliar, Moacyr. Na Noite do Ventre, O Diamante. Rio de Janeiro: Objetiva, 2005.

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